Em 1975 Gilberto Gil lançava um de seus mais inspirados trabalhos, o disco Refazenda. Tive o privilégio de assistir a um show de Gil quando o disco ainda estava saindo do forno, e assim, pude ouvir pela primeira vez músicas como Refazenda, Tenho Sede, Lamento Sertanejo, Pai e Mãe, e outras antes mesmo delas começarem a tocar no rádio.
Em outubro daquele ano, a revista Pop trazia um matéria com Gil falando do lançamento, e o texto de apresentação dizia:
"Ele pesquisa o universo misterioso das religiões orientais, mergulha nos túneis escuros da mente, mexe na terra, conversa com o público das cidades do interior. Mas nunca se afasta do caminho: em todo o trabalho de Gilberto Gil há uma profunda preocupação com a cultura popular. Dentro dessa coerência, Gil agora vem de Refazenda."
Abaixo a transcrição da matéria:
"Gilberto Gil estava na Bahia, depois de uma excursão por várias capitais e cidades do interior. Uma noite, pintou num sonho a palavra Refazenda e a imagem um pouco confusa de uma fazenda encravada num vale, com vacas, galinhas, árvores e, ao mesmo tempo, cercada de um aparato tecnológico próprio das grandes cidades. 'Era um lugar de todos os homens, e ao mesmo tempo, de solidão total. Analisando depois, entendi tudo aquilo como a síntese da simplicidade e também como uma grande necessidade existencial dominando minha cabeça. Resolvi explorar a palavra Refazenda ao máximo, pois a acho muito bonita.'
Da dissecação da palavra, como forma, e do conceito Refazenda, resulta o novo LP (recém-lançado) e toda a direção do trabalho atual de Gil: 'É um LP muito simples, quieto, tranquilo. As canções são todas apresentadas com muita cautela, sem improvisações e sem as explorações vocais até certo ponto absurdas que já me permito fazer. Nunca explorei um filão. Sou discípulo direto de Luiz Gonzaga e Dorival Caimmy. Mas, por outro lado, já incursionei pelos experimentalismos, dodecafonismos, já usei os osciladores todos, já fui violeiro e também Jimi Hendrix.'
Mas, como ideia, o que significa o novo trabalho de Gil? O que é a Refazenda? 'Refazenda é, para mim, como um prêmio conceitual a tudo o que já fiz, fui e serei. Minha intenção é acentuar esta abertura total, buscar dar mais cor ao verde das matas, fazer tudo renascer: que as flores voltem aos campos e, se for na cidade, que seja Refazenda. Em suma, Refazenda é tudo o que eu quiser viver, fazendar, andar de ré.'
Por outro lado, Refazenda é também um oportuno toque sugerindo a volta à simplicidade, à natureza, uma nova proposta de equilíbrio ecológico. Na explicação do conceito, por escrito, Gil diz: 'Renda tecida com fios do milho, milho ouro, milho sol, (...) Esperança transmutada em verde de verdade, verdes notas mágicas, o encanto da fazenda nova. Reencantação. A árvore da trindade: abacate, tomate, mamão. Árvore milagrosa: um fruto diferente a cada estação. (...) Refazenda segue sendo a vontade de Deus para cada estação'.
Muito dessa ideia nasceu do próprio trabalho de Gil, um trabalho incansável de troca de informações que ele pretende continuar:'Quero sair por aí conhecendo cidadezinhas do interior, levando espetáculos para pessoas que têm muito mais carência de um mundo de sonhos e fantasias como um show de Gilberto Gil ou outro artista qualquer. Uma apresentação dessas é muito mais densa que o circuito Rio-São Paulo. Alguém tem que fazer este trabalho de interiorizar a arte. Aliás, desde que voltei da Inglaterra tenho me dedicado a isso'.
E Refazenda 'também deve ser na cidade'. Ou na cabeça de cada um, mesmo que isso leve ao misticismo. 'Eu me considero um místico por excelência. Já abordei todas as seitas em busca do conhecimento, melhor entendimento entre matéria e espírito, céu e terra: candomblé, zen-budismo, ioga, etc. Cada nova fase é uma prisão voluntária à qual me submeti em busca da liberdade, sacou? Refazenda começa num vale e termina nos limites da mente...' "
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