Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 5 de maio de 2017

Sérgio Dias - Jornal Rock Press (1984) - 2ª Parte

"Não acredito em fronteiras, não acredito em países, não acredito em nada disso e acho que este é o grande câncer da raça humana. A situação atual do mundo, tantas guerras em nome da raça humana. A situação, tantas guerras em nome de fronteiras... Eu acho que a Terra é de todos, se as coisas fossem feitas de uma maneira mais racional seria bem melhor. Haver fome no mundo é um absurdo, o desemprego é outro absurdo. Acho que a consciência que faz um país deveria existir no nível terrestre. Mas eu vivo muito longe disso tudo; minha cabeça não funciona nesse sentido. É a minha visão musical: acredito na união dos sons, sem, é claro, perder seus próprios tesouros. O Brasil é o Brasil porque sofreu influência de todas as pessoas e culturas que vieram para cá. O samba ou o rock feitos aqui são diferentes dos de outras partes do mundo. Um judeu é um judeu em qualquer parte do mundo; um brasileiro é um brasileiro seja na Europa, na Ásia ou nos Estados Unidos.
Meu lado místico, atualmente, está bem realista. Ando voltado para mim mesmo, voltado para o meu auto crescimento. Não estou preocupado em divulgar as maravilhas do conhecimento, estou guardando comigo mesmo. Eu sei que a evolução é de cada um; não adianta ficar dizendo que Coca-Cola é gostoso até você experimentar, gostar ou não. Acho que era um pouco infantil de minha parte ficar falando a respeito dessa coisa mística. Era um desbunde, mas acho que na época foi válido. Hoje provavelmente eu falaria de política em minhas músicas. Não uma coisa de partido, dirigida, porque eu não sou politizado. Caetano é político, eu entendo de guitarras. Tenho vontade de falar da fome, da tristeza que isso me dá e de como vocês aguentam isso, como eu, sendo brasileiro, sou capaz de ficar assim... Talvez minhas letras não sejam letras para as massas, mas eu gosto de escrever, de falar das coisas. Na música Incredible Selfish Machine eu digo: 'Time to be by yourself, time to do all by yourself, while the incredible selfish machine goes on the road'. Quer dizer: tempo de você ficar sozinho, de fazer as coisas por si mesmo, enquanto essa incrível máquina egoísta continua pelo mundo. Isto no final é uma incongruência porque pra conseguir sobreviver dentro do egoísmo você tem que ser egoísta também, senão desmancha. Se o Brasil não for mais egoísta ele vai dançar brabo de verde e amarelo.
Sou careta. No momento eu sou caretíssimo. Mas já viajei muito, já ganhei meu brevê. Isso faz parte daquele papo místico: você descobre caminhos e você vai subindo devagar. Não adianta subir de elevador se não corre o risco de chegar lá em cima e descobrir que não tem estrutura para segurar a barra. Realmente a droga é uma coisa perigosa, te engana muito, pode fazer chegar a conclusões que depois, quando você volta não se enquadram na realidade. O próprio Castañeda fala dos antigos videntes que dançaram porque classificavam as coisas em dois níveis: o conhecido e o desconhecido. Isso provocava um aumento no ego porque eles se sentiam capazes de  chegar ao domínio total do desconhecido. Agora, os novos videntes dizem que existe um conhecido, o desconhecido e o que você nunca vai conhecer. Isso é mais real. Muita gente que se aventurou além do próprio desconhecido dançou brabo. As pessoas chegam a um nível de consciência o desconhecido que distorce totalmente a realidade do nível conhecido. Portanto é uma coisa muito perigosa se não for transada com muito know how.
Basicamente toda a raça humana é iluminada pelo mesmo espírito: Deus. Com ácido você pode chegar ao nível consciente disso e é fantástico. É o caminho para a telepatia, porque se todos nós somos um, você é a outra pessoa. Aquilo que Cristo dizia: Ama o próximo como a ti mesmo. Como Lennon dizia: I am you as you are me and we are all together. É basicamente o que o Zen Budismo ensina, enfim o que todas as religiões ensinam. Com ácido vc vive tudo isso numa situação real mas é difícil porque se de repente você, por exemplo, vira uma pessoa só com o mundo; você sofre todas as influências negativas que estiveram acontecendo e para isso é preciso ter um ego suficientemente forte para segurar a peteca. É muito de cada um, eu vejo uma coisa muito kármica nisso tudo. O Arnaldo, por exemplo, teve as mesmas experiências que eu mas foi pior para ele do que para mim.
No início tudo era uma festa. Na época eu tinha uns 14 anos. Comecei tocando no Six Sides Rockers, que era uma fusão dos conjuntos da Rita Lee e do Arnaldo. Eles me convidaram para ser o solista da banda e eu aceitei. Com a saída do batera, o Arnaldo veio com a ideia de fazermos um trio... o que eu achei péssimo. Imagina um guitarrista tocando sozinho com um baixista, sem bateria... Eu não acreditava, mas aí a gente fez os Mutantes. Mais tarde entrariam o Dinho na bateria e o Liminha no baixo. O primeiro disco dos Mutantes foi gravado em 67. A gente sentava e compunha juntos, mas muitas coisas eram influenciadas por outras que a gente ouvia. Daí fazíamos uma coisa purista, não tinha essa de dizer: ah, vamos copiar. Tem citações de músicas dos Mutantes que são basicamente isso. Se for para pensar em termos de plágio são totalmente roubadas até, mas era o que a gente sentia em relação àquilo. Passou a ser uma linguagem.
Atualmente não gosto do que a Rita anda fazendo. Acho muito chato. A Rita é bem melhor que isso. Sei que ela está ganhando dinheiro mas eu não me sacrificaria a esse ponto, de tocar bolero, para sobreviver. Prefiro comer pão mais barato e tocar o que gosto. Talvez ela nunca tenha sido rock and roll, mas ela fala coisas boas; é uma excelente letrista, é muito forte... de qualquer maneira estou muito envolvido para falar sobre isso. Basicamente o que importa é se ela está feliz. O Arnaldo é gênio, é fantástico. Foi ele quem fez tudo isso que vocês sabem. É uma pena ver o que aconteceu.
Eu não acho que o rock progressivo esteja morto como muitos dizem. O que aconteceu foi uma volta às origens com o punk e o new wave. Uma aproximação ao grito interior, uma coisa de raça. Mas tudo está tendo novamente a mesma evolução de dez anos atrás. Ninguém aguenta a mesma coisa durante muito tempo e logicamente ela terá de evoluir. Vejam, por exemplo, os primeiros discos do Police e comparem com os últimos, que são bem mais progressive. Vejam que o Yes  está voltando e que é progressive total. O Rush também é bem progressivo... Eu acho que agora o progressivo vai voltar mais forte, sem aquele caráter clássico de antes. A roupagem vai ser uma coisa dos anos 80: muita máquina, muita tecnologia, mais ainda com a espacialidade que o progressivo dá... e que é bom. Acho que sou essencialmente progressivo, as cores dessa música me fascinam muito. O espaço que você tem dentro do progressivo é uma coisa bem interior e eu sou uma pessoa muito interiorizada; minha música é algo bem a esse nível. Gosto de traduzir esse mundo musicalmente e o progressivo, com certeza é a melhor maneira para isso. No tempo dos Mutantes eu era responsável pelo progressivo, os sons, os solos, essas coisas era basicamente eu que transava. Sempre  foi minha função maior dentro dos Mutantes a inovação sonora.

Primavera de 1984 - Rio e Janeiro "

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