Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 18 de maio de 2017

A MPB Que O Brasil Não Ouve - O Globo (2000)

Em sua edição de 20/02/2000, o jornal O Globo trazia uma interessante matéria sobre discos raros e até esquecidos de nossa música, que só poderiam ser encontrados no exterior. Hoje, passados mais de 17 anos da publicação da matéria, muita coisa mudou, alguns dos álbuns citados na matéria foram relançados por aqui, em CD ou vinil, mas a situação destacada ainda ocorre muito. Ainda hoje, muitos discos de música brasileira somente são encontrados no exterior. Em 2000, por exemplo, o vinil era considerado um item fora de cogitação no mercado da música em termos de relançamentos, numa época em que o CD imperava absoluto.
A matéria, assinada por Hugo Sukman, destacava vários álbuns básicos de um período distante, muitos deles esquecidos e até desconhecidos por uma grande parte de consumidores de música. A internet ainda não era popular e a ferramenta de pesquisa tão ampla como é hoje, por isso muitos álbuns de enorme valor artístico e considerados raros eram ainda desconhecidos. As capas de discos que ilustram essa postagem foram todos extraídos da matéria. É interessante ler o texto hoje:
"A história começou de forma charmosa, no célebre concerto de bossa nova no Carneggie Hall, em 1962. Prosseguiu enchendo o Brasil de orgulho quando ninguém menos do que 'the voice' Frank Sinatra gravou um disco inteiro ao lado de Tom Jobim. E continuou com notícias esparsas do reconhecimento deste ou daquele artista brasileiro mundo afora. A saga da música popular brasileira no exterior chega no ano 2000 a um paroxismo: de exportadores de música passamos a importadores. Da nossa música.
Dependendo do tipo de música brasileira que o consumidor queira ouvir, é mais fácil encontrar discos na Tower Records de Nova York, Londres ou Tóquio do que numa lojinha da rua Uruguaiana. 
- Entro em lojas no Japão, nos Estados Unidos ou na Europa e acho oito ou nove discos meus em catálogo. Aqui, entrei outro dia e não achei nenhum - exemplifica a cantora e compositora Joyce, um exemplo dos mais radicais de presença no exterior em contraponto à quase ausência por aqui.
Joyce, que lançou no final do ano o CD 'Hard Bossa' pelo selo inglês Far Out, sabe o que está falando. Gravou o disco num estúdio da Barra, todo com canções suas ou em parceria com Paulo César Pinheiro e Maurício Maestro, cantadas em português e tocadas  por músicos brasileiros. É um disco de MPB radical, tem até samba de roda. Vendeu cerca de 40 mil cópias no exterior, mas aqui não achou gravadora interessada.
Os discos que ilustram esta página, novos ou velhos LPs relançados em CD, todos comprados no exterior, são uma pequena amostra da situação: do sambista Wilson Moreira, que teve seu 'Okolofé' lançado só no Japão, à bossa nova de João Donato ('Quem É Quem'), Marcos Valle ('Samba 68'), Wanda Sá ('Vagamente') e Carlos Lyra ('Preciso Cantar' e 'Eu e Elas'), passando pelo melhor instrumental brasileiro de Eumir Deodato (os cinco discos gravados por sua orquestra Os Catedráticos) e Hermeto Pascoal ('Brazilian Adventure'), todos só estão disponíveis no Brasil nos escaninhos de importados das lojas especializadas.
- Da maneira como a indústria do disco está funcionando no Brasil, com o investimento pesado num tipo de música de sucesso imediato, realmente faz sentido que essas coisas não encontrem espaço - diz Marcos Valle, que também lançou seu último disco, 'Nova Bossa Nova,' pelo  inglês Far Out, quase um ano antes de conseguir distribuição brasileira pela independente  Natasha. - Hoje em dia, pelo menos 50% do volume do meu trabalho acontecem no exterior. Foi por causa da repercussão deste trabalho na Europa e no Japão, inclusive, que a minha carreira no Brasil tomou impulso de novo nos últimos dois anos.
Hoje, Marcos, assim como Joyce, prepara novo disco exclusivamente para o mercado externo. E, de novo, cantando em português, gravado no Rio, com músicos daqui. Brasileiríssimo, enfim.
Mas há casos ainda mais eloquentes da pobreza da nossa situação fonográfica em comparação às de Japão, Estados Unidos e Europa (que também têm o Só Pra Contrariar e o Padre Marcelo Rossi, mas não ficam só nisso). Cantora e compositora japonesa criada no Brasil, Lisa Ono não tem apenas um, mas 11 CDs dedicados à música brasileira, gravados nos anos 90. O penúltimo, 'Bossa Carioca', produzido por Paulo Jobim, já vendeu mais de 200 mil cópias no Japão.  Aqui, como toda a sua obra, que abrange bossa, samba e ritmos nordestinos, permanece inédito: a EMI brasileira não se interessou em lançar o original da EMI japonesa.
- Ela fica triste com isso - diz Mônica Ramos, produtora de Lisa no Brasil. - Seu sonho era ser lançada no país que a inspira e para o qual faz sua música.
Lisa está em Nova York gravando seu 13º disco, com arranjos de Eumir Deodato. O 12º, produzido por Oscar Castro Neves, traz standards americanos com levada de bossa.
- É raro, mesmo no Brasil, um trabalho de música brasileira tão denso como o de Lisa. Ela tinha que ser mais conhecida aqui - diz Joyce.
Não são somente os nomes consagrados que vivem mais fora do que dentro do país. Cantoras iniciantes tiveram que optar pelo mesmo caminho. O primeiro disco da celebrada cantora carioca Arícia Mess, 'Cabeça Coração', sai em março no Japão.  No Brasil, só no mês seguinte, e mesmo assim em tiragem independente, já que não houve interesse de gravadoras, mesmo em se tratando de um trabalho elogiado pela crítica, pop, eletrônico, contemporâneo.
- O Brasil tem um problema de auto-estima com as coisas dele, com os filhos dele - avalia Arícia. - Mas os filhos dele têm auto-estima. É um problema também econômico, de mercado. Com uma economia instável, o mercado fica doido. O artista tem, então, que criar o seu mercado.
As filhas de Joyce que também são cantoras, Clara Moreno e Ana Martins, também só conseguem gravar no Japão, mesmo em estilos distintos. A primeira faz música brasileira eletrônica e já está no terceiro CD. Ana vai estrear este ano com 'Futuros Amantes', numa linha pós-bossanovista.
Mercado parece ser mesmo a palavra-chave para entender o problema. O presidente da gravadora Universal, e também da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), Marcelo Castelo Branco, atribui a situação à crise dos canais de distribuição e ao crescente interesse dos mercados externos pela música brasileira.
- Desde 1992 a Universal, quando ainda era Polygram, iniciou um processo de exportação da música brasileira. Desde então, nossos royalties aumentaram cinco vezes. Estamos falando de um mercado muito interessado em música brasileira, como o Japão, o segundo do mundo, onde um nicho desse mercado é equivalente ao total de países inteiros - diz.
 Para ele, contudo, é hora de a indústria brasileira de disco recuperar o tempo perdido e corrigir os erros do passado.
- Reconheço que não foi uma boa estratégia o relançamento que a Polygram fez, por exemplo, de alguns discos da Elenco (selo de Aloysio de Oliveira, o principal da bossa  nova nos anos 60). Tentamos modernizar as capas, colorizando-as. Mas percebemos que a sedução está no original.
Isso é fácil de perceber, bastando ver as reedições japonesas dos discos da Elenco: em 'Billy Blanco na Voz do Próprio', recém-lançado, a capa é rigorosamente a mesma, o elegante desenho em preto e branco com detalhes vermelhos que caracterizava a gravadora, e até os textos em português são mantidos - as informações em japonês vêm em encarte à parte. Esse padrão é repetido em qualquer disco brasileiro lançado no exterior.
- A Universal tem esse patrimônio todo e tem o dever de botá-lo à disposição do mercado - reconhece o executivo, que já anuncia pra julho a reedição (respeitando os originais) de preciosidades como a trilha sonora do filme 'Garota de Ipanema', de Eumir Deodato sobre canções de Tom, Vinícius e do Chico Buarque iniciante, da vanguardista série de 'Afro-sambas, de Baden Powell e Vinícius, e mais originais de Maysa e Tamba Trio e o 'Samba 68' de Marcos Valle - coisas que o Japão e o mundo já vem ouvindo há muito tempo.
Se a maior gravadora parece querer acordar dentro do subdesenvolvimento do mercado, os artistas contemporâneos ainda estão descrentes.
- O pop, a partir de minha geração, virou a situação. Faço música de oposição - brinca Joyce, que vem ganhando fãs variados pelo mundo, dos tradicionais cultores das riquezas harmônicas da música brasileira a radicais roqueiros americanos e os eletrônicos ingleses, que vivem elogiando a cantora pela Internet por sua postura musical livre. "

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