Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Sérgio Dias - Jornal Rock Press (1984) - 1ª Parte

Em 1984, o guitarrista Sérgio Dias, o eterno Mutante, havia chegado de pouco ao Brasil, depois de viver durante alguns anos nos Estados Unidos. O jornal musical Rock Press  nº 1, de outubro daquele ano, trazia uma matéria com Sérgio, apenas com depoimentos do músico sobre sua experiência nos EUA, e como ele encontrou o Brasil em sua volta:
"O Brasil está um caos. É terrível, ridículo tudo isto que está acontecendo aqui. Você vê; esta mentira toda da política é uma coisa ridícula. Quando eu estava em Nova York saiu nos jornais sobre as manifestações pelas diretas; um milhão e meio de pessoas no Rio, um milhão em São Paulo. De repente não acontece nada. O governo fala: 'não, não pode ter' e todo mundo cala a boca e vai pra praia. Me entristece muito ver a fraqueza do povo, a falta de patriotismo do brasileiro, porque eles honram muito pouco a terra em que nasceram. É uma pena ver o medo do brasileiro até em assumir o próprio Brasil. É muito fácil dizer: 'Ah, nós somos dominados'. São dominados pelos próprios brasileiros. Há os que lucram com isso. Só 2 por cento da população é rica, enquanto o resto morre de fome. Será que esse pessoal não sabe que está morrendo de fome? Não acredito que alguém possa ser tão burro assim. Penso que é quase uma coisa genética. Tem aquela piada popular que diz que quando Deus estava fazendo o Brasil seu auxiliar perguntou: Mestre, você vai colocar furacão na Flórida, terremoto no Japão, maremoto não sei onde, e no Brasil este paraíso? Ao que Deus respondeu: 'Espera até ver o povo que Eu vou botar lá.' E é verdade; você vê no trânsito, o brasileiro é muito egoísta. Cada um por si e foda-se o resto. É aquela transa do malandro, te esfaqueia pelas costas. O americano não, ele te esfaqueia pela frente; diz que vai te fuder e te fode mesmo. Já o brasileiro é por trás de muitos sorrisos e isto já não cabe mais na atualidade porque transando com o mundo dessa forma ele é visto com clareza tão grande pelos povos mais desenvolvidos que termina sendo tomado por índio mesmo.
Foram vários os motivos que me levaram para os Estados Unidos. Tinha terminado aquele disco solo aqui, mas a CBS estava muito devagar e eu não estava com paciência. Ao mesmo tempo L. Shankar estava fazendo coisas por lá e tinha me chamado para participar de uma tour com ele. Também havia a possibilidade de gravarmos um LP juntos. Depois pintou a Susan, minha ex-mulher norte-americana e o convite do Eddy Offord para gravar um LP. O disco foi feito há 3 anos e atualmente o manager está tratando de seu lançamento no mercado norte-americano. Lá nos Estados Unidos essa demora no lançamento é normal quando se trata da venda de um produto independente. Mas a experiência com o Eddy Offord foi muito importante inclusive tudo o que sabia sobre a gravação eu tive que jogar fora. Lá você tira o som com o ouvido e não com a eletrônica e funciona dez vezes melhor. Você chega no estúdio, põe um microfone no bumbo, vai pra sala sem equalizar e o som que está lá é o som do bumbo. Você não tem que ficar mexendo em todos os botões para tirar um som parecido com o do bumbo como acontece aqui.
Musicalmente falando o nível é estupendo. Toquei com pessoas de um nível que jamais encontraria aqui; aprendi demais
Pessoalmente não sou muito chegado ao rock norte-americano, sempre fui mais influenciado pelo rock inglês, mas o jazz, por exemplo, está lá nos Estados Unidos. Tocar com Airto Moreira, L. Shankar, esse nível de gente te enriquece muito. O engraçado é que para eles sou uma pessoa sui generis porque em geral os guitarristas de lá são especializados; este toca rock, aquele toca jazz, aquele outro toca sei lá o que, mas eu toco tudo. Isso era bom porque sempre me dava bem em todas as situações. Outra coisa boa é que meu som, por incrível que pareça, é melhor que o som deles inclusive tecnologicamente.
Minha guitarra é tecnologia brasileira, foi meu irmão Cláudio quem fez e aí toda vez que eu ia gravar era um choque porque nunca tinham visto um som tão limpo.
O que me dá muita saudade é a MTV (Canal de televisão por cabo que só transmite vídeo-clips). Mas televisão lá não é muito boa não. Em termos de programação normal tem o Thirteen, que é um canal feito pelo povo. Você diz o que quer ver e eles programam. Totalmente democrático. Tem também os cables (Tvs por cabo) mas enchem o saco porque apesar de programarem excelentes filmes repetem o mesmo filme dezenas de vezes por mês. Agora rádio, pelo menos em Nova York é muito chato. É uma coisa muito igual, sem muita inventividade e totalmente dominada pelas companhias de discos. As rádios perdem muito sua função: um disk jockey não tem a menor flexibilidade ou liberdade; tem que tocar o que está programado pelas companhias e pronto. A rádio lá não tem mais função social como a Fluminense FM tem aqui no Rio, com os grupos mandando fitas para serem tocadas, indo à rádio, transando concertos, etc. É fantástico porque assim a rádio passa a fazer parte do povo e este é o grande barato da rádio. O que deve acontecer nos Estados Unidos provavelmente é uma nova revolução em termos de rádio. Atualmente a música lá está muito estéril; eles são muito elitistas: uma rádio é de funk, outra de rap music, outra de country. Mas eu espero que aconteça alguma coisa nova, nem que seja influenciado por alguém de fora, porque eles não têm muitas ideias não."

(continua)

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