Palavras Domesticadas

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domingo, 11 de dezembro de 2016

Djavan - Revista Pipoca Moderna (1982) - 2ª Parte

"O tão temido sotaque norte-americano de Luz - lançado com uma tiragem inicial de 100 mil cópias, 30 mil a menos do que o somatório das vendas de toda sua discografia anterior - é imperceptível, para alguns; indiscutível, para outros. E a música de Djavan, aquela coisa tão difícil de explicar, tão intrigante a ponto de ser de duro acesso, mudou? Mudou, na medida em que toda a experiência norte-americana influiu sobre sua feitura, na mesma proporção em que viagens anteriores a Angola e a Cuba apontaram nuances em Djavan que estavam nele desde o nascimento, mas que ele ainda não tinha realizado a contento. Mudou, também, em certa parte, na embalagem, na medida em que a ideia inicial era de se lançar Luz também nos Estados Unidos (pensa-se ainda em uma versão americana do disco). E o Djavan, que agora é festejado com queijos e vinhos no Rio Palace e no Maksoud (ele mesmo estranhou  os festejos suntuosos quando soube deles, mas cedeu ao ver que a suntuosidade seria reduzida a um mínimo), esse Djavan mudou?
'Eu sabia do risco de cair no padrão, no invólucro do produto americano', conta Djavan num estúdio situado estrategicamente abaixo da axila direita do Cristo Redentor, no Humaitá, enquanto Sururu de Capote esquenta as turbinas para mais um longo ensaio antes da excursão nacional que já o levou a Belo Horizonte, ao Rio de Janeiro, a Curitiba e que agora aporta em São Paulo. 'Mas o que eu queria era exatamente aproveitar o máximo do que eles têm de bom. Ou seja, a parte técnica, a tecnologia deles, e os músicos, os grandes músicos que eles tem. Eu lutei muito com o Ronnie  Foster, que é uma pessoa que eu amo e que ama muito a música brasileira, pra que a coisa não corresse pra margem de lá, você tá entendendo? Porque eles têm aquela coisa de querer americanizar tudo. Por mais que eles gostem... mas é uma coisa inconsciente. São assim desde o começo. Tudo que é americano é inconsumível. Mas, na minha cabeça, como eles dizem que meu som é internacional, é um som extremamente viável nos Estados Unidos, porque não fazê-lo como ele é realmente? Porque usar o invólucro deles se, na minha opinião, há um marasmo nos Estados Unidos?'
'Eu lutei muito. Eu disse - não, tem que ser como tem que ser. Eu não vim pra cá entregar o ouro, assim. Eu vim pra cá fazer o que eu sempre fiz. Aí não teria sentido sair do Brasil, ficar 45 dias longe dos meus filhos, sofrendo uma saudade terrível, pra depois entregar tudo de bandeja pra vocês. Não'.
'Eu sou uma pessoa que não abre mão das coisas que faz', prossegue Djavan acendendo mais um cigarro de baixos teores e abrindo mais uma lata de coca-cola. 'Você não consegue me convencer de uma coisa que eu não quero fazer. Eu acho que só eu tenho certeza. A música, fui eu que criei, meu som já existe, independente de qualquer americano. Eu e Ronnie Foster íamos brigar, sair na mão até, mas não ia ser diferente, porque não houve jeito de dele segurar a barra  de fazer um som como se faz nos Estados Unidos. Caso contrário, eu voltaria, arranjaria um outro produtor ou mesmo eu produziria meu disco lá. Mas não foi necessário isso'.
Mas será que o resultado obtido em Luz não teria sido obtido aqui, já que o interesse obtido aqui, já que o interesse principal era a tecnologia? Djavan faz uma longa pausa e olha momentaneamente para os pés, calçados em sapatos chineses negros. 'Olha, eu compus esse disco baseado muito numa música mais internacional, mais abrangente. É lógico que minha música nunca foi regional, nunca pretendi que ela fosse. Mas a composição desse disco tem algo de mais além fronteiras. Eu tenho um interesse antigo de expandir meu trabalho, de cantar em vários lugares do mundo, que esse trabalho seja avaliado por todo mundo... mas como foi mesmo a pergunta? Ah! Obteria o mesmo resultado, em termos de qualidade. Porém, diferente deste'.
'Eu acho que meu disco é diferente', encerra Djavan antes de ser chamado irrevogavelmente para o ensaio, 'da mesma forma que todos os meus discos são diferentes em relação aos anteriores, porque isso é uma busca minha. Eu jamais me contentaria em fazer um novo Luz no ano que vem. Aí não tem sentido. E o que eu aprendi durante todo o ano? E o que eu vivi? E as novas experiências? Aí não teria sentido nenhum, porque a vida se transforma a cada minuto, eu me transformo a cada minuto, uma vez que ela é o reflexo da minha passagem por aqui, ela é a minha existência em qualquer lugar do mundo, em qualquer momento'.
A existência de Djavan já o levou a muitos lugares e valeu-lhe uma experiência considerável para seus poucos anos, tornado menores por sua indisfarçável aparência de garoto arredio e carente, sublinhado por um olhar meio tristonho, meio desafiador. Ele é o caçula temporão de três irmãos - ele, Djacy e Djanira - nascido numa família de muitas 'mães', em Maceió, Alagoas. 'Todo mundo me queria', confessa rindo', 'porque era um garotinho gorduchinho, muito bonitinho, então era muito mimado. O que é ruim hoje, porque sou uma pessoa muito dependente, não sei fazer nada sozinho'. E a música entrou fácil em sua vida. Ou, como ele prefere, 'a minha vida entrou na música. Minha mãe sempre foi uma mulher muito cantante, rítmica (estala os dedos); era uma negra bonita, tinha um quê, uma quebrada  africana. Tanto que, enquanto as mães cantavam Boi da Cara Preta, ela fez uma música pra mim; 'passo preto, gavião/segura o Djavan, senão vai o chão/ele é 'seu' Djavan/e nele só se vê falar/convidou seus camaradas/para poder vadiar/olê, passo preto'. Desnecessário dizer que na divisão rítmica e na poética da canção de ninar já estavam todos os germes que impregnariam absolutamente toda criação de Djavan.Contudo, não foi fácil deixar que a música acabasse de ver sua vida entrar nela. Por desejo da família, Djavan seria hoje um sargento do Exército. Pensaram até em mandá-lo à Academia de Agulhas Negras, mas rebelou-se, fugiu de casa e arrumou um emprego como escriturário da Crush, para logo depois formar sua primeira banda, LSD. 'Tocávamos muito Beatles', diz, 'e eu era o Paul McCartney'. Somente anos depois Djavan começaria a compor. E a pensar em ir para o Rio de Janeiro. Casado, com um filho nascido e mais outro na barriga de sua mulher, Aparecida, Djavan desembarcou no Rio em 72, sem conhecer ninguém. Graças às boites, Djavan conseguiu manter-se vivo, até que o radialista carioca Adelson  Alves levou-o a João Araújo, presidente da Som Livre, que se interessou por Djavan e o contratou. O compacto duplo resultante - com 'Flor de Lis' e 'Fato Consumado', 2º lugar do festival Abertura - sairia apenas três anos mais tarde, por força exclusiva do festival.
Djavan e Aldir Blanc, parceiros
Djavan voltou, então, à noite até ser descoberto pelo produtor Mariozinho Rocha no 706, no Leblon, que o levou da Som Livre para a Odeon. Mas  uma coisa ainda incomodava Djavan. Seu primeiro álbum, ainda pela antiga gravadora, fora recebido com frieza pela crítica, que vira nele um 'pseudo-Gil', 'porque não tinha havido paciência de descobrir a mim mesmo em meu trabalho'. Irado e magoado, Djavan iniciou, então, uma série de discos que, cada vez mais, delineavam uma assinatura personalíssima, progressivamente distante do que muitos viam nele. E que ele não era. Daí, talvez, o misto de estranheza e falta de compreensão como Cara de Índio, Alumbramento e, em parte, Seduzir viriam a ser recebidos. A surpresa sempre foi o elemento mais importante da música de Djavan e dela ele sempre soube tirar proveito para tentar eliminar - ou aliviar - qualquer pré-conceito. Como se empunhasse uma espada de retoque criativo para usá-la com exatidão zen, como um samurai negro em turras contra o gosto pelo morno e imutável.
Os adversários que o Djavan de hoje enfrenta são muito mais sofisticados. Tomam a forma de uma multinacional de discos que quer transformá-lo num astro internacional, provavelmente sem levar em consideração o quanto de genuinidade seu artista possa vir a perder, no meio do caminho.
No que depender do Djavan que em setembro ensaiava no Humaitá, essa nova batalha será tão arrefecida quanto longa, já que, aconteça o que acontecer, pareça o que parecer, Djavan é um sujeito basicamente teimoso e seus alvos são muito bem definidos, irrevogáveis. Pelo manos há franqueza quando ele diz isso. E quando diz que, no fundo sua substância será sempre a mesma. Mutante e o quanto possível sem definição.
'Me incomoda muito isso', Djavan conta enquanto escurece na rua, 'essa coisa toda de sempre procurarem um rótulo, uma marca, de dizerem que Djavan é nordestino, é isso ou aquilo. Nem brasileiro eu quero ser! Sem o menor preconceito. Eu quero que me digam que eu faço música, apenas'.
'Não precisa me dizer que eu sou um compositor de música brasileira. Eu detesto essa sigla, MPB, eu odeio esse negócio, porque acho uma coisa preconceituosa. Eu acho muito ruim querer limitar a coisa que você tem mais pura, que é seu pensamento, sua criação, uma coisa que você tem dentro de você. Eu acho ótimo não ser compositor de nada e, sim, apenas de música.' "

2 comentários:

  1. Quem escreve precisa de rótulos,Djavan,senão ...a escrita não sai.

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  2. Djavan tem um jeito bem próprio e peculiar de escrever, o ue às vezes gera críticas, mas sua musicalidade é incontestável

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