Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Milton Nascimento - Revista Pop (1975)

Em 1975 Milton Nascimento vivia um período bastante agitado em sua carreira; lançamento de seu histórico disco Minas, shows pelo país, projetos de novas gravações nos Estados Unidos, etc. Após um período em que viveu dificuldades financeiras, e que contou com a ajuda significativa de seus amigos Chico Buarque e Caetano Veloso, que junto com ele fizeram um show no Canecão (Rio de Janeiro), com renda revertida para ele, Milton fazia muitos planos para sua carreira.
Na ocasião Milton já era um dos músicos mais respeitados e reconhecidos do mundo, e requisitado para gravações no exterior com grandes músicos, como o saxofonista Wayne Shorter, com quem gravou um álbum muito elogiado, Native Dancer. Em novembro daquele ano, a revista Pop trazia uma entrevista com o grande músico, concedida a Eduardo Athayde, em que se destacava a frase "Agora vou encarar a barra internacional". Em um texto introdutório à entrevista, a revista diz:
"Um novo LP cheio de magia e com a participação dos melhores amigos; um compacto onde recria um velho sucesso dos Beatles; o já clássico disco gravado nos Estados Unidos com o cobra Wayne Shorter; um show histórico com Chico Buarque e Caetano Veloso, no Rio; a produção de vários discos de amigos músicos;. promessas de shows por todo o Brasil. Tudo isso está na agenda de Milton Nascimento nesse final de ano, em que ele se livra de dívidas e problemas e parte com muita garra e disposição para o trabalho. Inclusive, seus planos agora não se limitam a transações brasileiras. Para ele, chegou o momento da conquista definitiva do prestígio internacional."
Segue abaixo, a entrevista:
"Quando o saxofonista americano Wayne Shorter convidou Milton Nascimento para participar especialmente de seu novo LP, Native Dancer, já sabia que o brasileiro ia dar tudo na gravação - o que era uma garantia de alto nível para o trabalho. Mas Wayne talvez nem imaginasse que Milton acabaria sendo praticamente a estrela do disco, uma revelação fascinante para o mercado musical americano. Mesmo assim, com prestígio e sucesso no exterior, Milton andou enfrentando barras bem pesadas no Brasil. De repente, devia a seu empresário muito mais do que podia pagar. E a Sombras (*) acabou promovendo o encontro de Milton com Chico e Caetano. Com a grana, Milton acertou seu lado.
Pop- Houve muita especulação em torno do show, que você, Chico e Caetano fizeram no Canecão. Muito papo na base de que você estava duro, que haviam penhorado seu piano, que seus amigos o exploram, etc. O que houve na realidade?
Milton - Vamos por etapas. Em princípio, o show foi promovido pela Sombras, entidade que visa defender os interesses dos músicos em geral e, basicamente, abrir cada vez maiores frentes de trabalho e integração. Houve uma época na música popular brasileira em que todo mundo se apresentava junto, espontaneamente. Os motivos são muitos, mas há muito tempo surgiram patotas, igrejinhas e outras tolices do gênero. Eu e o Caetano já havíamos nos apresentado juntos, ora em meus shows, ora em suas temporadas. Dizer que eu e Chico Buarque somos grandes tímidos é quase um lugar comum. Claro que eu morria de vontade de trabalhar com ele, e vice-versa, mas quem iria romper nossa timidez? Ele e Caetano cantaram e gravaram juntos e foi um sucesso danado. A Sombras se encarregou de romper a barreira da timidez e foi uma das maiores emoções de minha vida. Nos camarins do Canecão teve uma hora em que ficamos nós três sozinhos, cara a cara. Bendito seja Caetano! Ele estava num relax incrível e eu e Chico tremíamos pacas. Aí o Caetano disse: 'Gente, vamos bater um papinho que o show tá quase começando.' Foi lindo, cara! Quanto às minhas dívidas, posso afirmar que hoje não devo nada a ninguém Viver com meus amigos é fundamental pra mim. As portas de minha casa vivem abertas, e eles me motivam a criar, trabalhar, existir, em suma. Grilos empresariais? Houve sim, mas estamos quites, e agora já é hora de partir pra outra. Mas vamos deixar uma coisa bem clara: a Sombras não é uma entidade beneficente, e sim, a força jurídica que necessitamos para acabar com os trambiques e descalabros que pintam na praça.
Imagem do show de Chico, Milton e Caetano
Pop - E seu novo LP?
Milton - Foram dois meses de gravação. Junto com o LP saiu um compacto simples com Norwegian Wood (Lennon e McCartney) e Caso Você Queira Saber (Beto Guedes e Márcio Borges). O LP Minas, para mim, é o verdadeiro Clube da Esquina, porque representa o encontro de todos os meus amigos.  Em Saudade dos Aviões da Panair, além do pessoal do Som Imaginário, chamei todo mundo para cantar, o que deu realmente o clima da música.  Veio gente de São Paulo, do Rio, Três Pontas, Belo Horizonte, a rapaziada toda na melhor. As outras músicas são: Minas (Novelli), Fé Cega, Faca Amolada (Milton e Ronaldo Bastos), que canto com Beto Guedes, Gran Circo (Milton e Márcio Borges), Ponta de Areia (Milton e Fernando Brant), Trastevere (Milton e Ronaldo Bastos), Idolatrada (Milton e Fernando Brant), Leila (Milton), que é uma homenagem a Leila Diniz e à alegria de viver que ela tinha, Paula e Bebeto (Milton e Caetano), que fizemos em homenagem a dois amigos meus de Belo horizonte, e Simples (Nelson Ângelo). A base toda é o Som Imaginário, e ainda houve a participação de Edson Machado, Tenório Jr., Fernando Leporace, um coro de quatro garotos de Minas: o MPB-4, Golden Boys, Joyce, etc. Quem chegava, gravava numa boa. A produção é de Ronaldo Bastos, e a capa, de Cafi.
Pop - Vai haver algum show especial para marcar o lançamento?
Milton -Show? Nós vamos fazer a maior loucura em Três Pontas (MG). Vai todo mundo, além do Som Imaginário. Quero ser o mais fiel possível ao clima de festa do disco. A moçada  vai numa de acampar e se virar, porque a cidade é muito pequena. Depois vamos a Belo Horizonte, Niterói, São Paulo e pelo Brasil todo.
Pop - E os planos para 76?
Milton - Estou produzindo, com Hermínio Bello de Carvalho, o LP de Simone, um LP de Wagner Tiso, outro do Som Imaginário e mais um de Beto Guedes. Ao mesmo tempo vamos organizar nossa vida. Este negócio de empresário não dá pé. Temos agora uma pessoa amiga, de confiança, que está transando tudo. Assim é mais fácil controlar as coisas. Se der lucro ou prejuízo, a gente sabe na hora. Se eu quebrar a cara, tudo bem - mas tenho certeza de que as coisas serão bem diferentes. Já estamos abrindo uma editora, com o nome de Três Pontas, o que é uma grande jogada.
Pop - Qual o saldo do show do Canecão?
Milton - Financeiramente, só o pessoal da Sombras está autorizado a responder. Mas artisticamente, além do sucesso, ficou a certeza de que eu, Chico e Caetano vamos trabalhar juntos novamente, inclusive já começamos a compor uma música juntos.
Pop - Vai ser lançado um LP do show?
Milton - O show foi gravado pela Sombras e a fita tem excelente qualidade técnica. As gravadoras (Odeon e Phonogram) querem lançar. Só falta acertar detalhes de royalties e outros grilos menores. De qualquer modo, não poderia ser agora, pois poderia prejudicar a vendagem dos discos de Chico, Caetano e do meu.
Pop - E afinal, você está duro ou não?
Milton - Não, não estou. Inclusive já estão pintando os royalties do LP que gravei com Wayne Shorter nos Estados Unidos. Aliás, no ano que vem vou aos Estados Unidos para fazer um show em Miami. Sempre com o Som Imaginário. Como tenho um contrato com a A&M, vou gravar um LP em Los Angeles. Pode parecer pretensão, mas vou usar músicos como o Wayne Shorter, o Hubert Laws e outros cobrões. Vai dar o maior pé.
Pop - Você tem um LP (Courage) lançado nos Estados Unidos. Como é o seu relacionamento com os músicos lá de fora?
Milton - O melhor possível. No ano passado estive no festival de jazz em Montreux (Suiça), onde estavam as maiores feras: Gil Evans, Chicago, o pessoal da Mahavishinu Orchestra. Eu estava ali olhando pra eles, na maior admiração, e de repente vi que eles também falavam de mim. Naquela época eu nem sabia que a Mahavishinu tinha gravado  Ponta de Areia, reunindo só cobrões. Sei que lá fora está dando o maior pé pra mim. Aliás, sabe de uma coisa que me emocionou muito e que não tem nada a ver com os Estados Unidos ou Europa? Soube que vai ser inaugurado em Três pontas o Bituca's Bar. É a glória1
(Nota da Redação: Bituca é o apelido de Milton Nascimento.) "


(*) A Sombras era uma entidade criada e administrada por músicos e compositores, com a finalidade de defender seus direitos

5 comentários:

  1. O lançamento do show Milton/Chico/Caetano ficou esquecido. Será que a gravação ainda existe?

    ResponderExcluir
  2. Se essa gravação existe ainda, é um registro histórico. Nunca mais ouvi falar nessa fita nem nesse show. Seria o caso de alguém interessado buscar esse registro

    ResponderExcluir
  3. Sim ,eu lembro dessa época. Milton vivia dificuldades financeiras, e esse show arrecadou uma grana para amenizar a situação

    ResponderExcluir
  4. Há poucas semanas fui ver a "Última sessão de música" do grande Milton Nascimento, também fui ao teatro "Liberdade" ver o musical "Clube da Esquina". Ainda me recordo quando aos 15 anos comprei a revista POP em busca do pôster do Rick Wakeman no qual havia acabado de ver o show no ginásio da portuguesa. Nunca esqueci daquela primeira entrevista com Milton que havia lido na revista POP. Olá Márcio, quero te agradecer por ter me dado a oportunidade de reler a tal entrevista depois de tanto tempo...Estou vendo o último show do Bituca no Mineirão e não poderia haver nada mais digno a este monstro sagrado da nossa MPB.
    Muito Obrigado!

    ResponderExcluir