Palavras Domesticadas

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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Revista Música Popular Os Poetas - Edição Especial (1986) - 1ª Parte

Nos anos 80, a editora Imprima, especializada em revistas que traziam cifras para violão, lançava também algumas edições especiais enfocando temas ligados à música, com bons textos e análises. Uma dessas edições especiais, publicada em 1986, foi sobre grandes letristas. A própria capa já traz um resumo do conteúdo, com os letristas destacados: "Noel Rosa, o primeiro poeta. Lupiscínio Rodrigues, Dolores Duran: tirando da dor-de-cotovelo o poema perfeito. Vinícius de Moraes: ampliando o significado de uma letra de música. Chico Buarque: o poeta predileto da censura. Caetano, Gil, Capinam: uma brasilidade auto-crítica e bem humorada e muitos outros poetas inspirados".
Como várias vertentes e seus respectivos letristas mais representativos são destacados, e a postagem teria que se desdobrar em várias partes, vou me focar na Jovem Guarda, Tropicalismo e Pós-Tropicalismo:
"O cantor Roberto Carlos fazia a vida cantando em boates: cantava bossa-nova e acompanhava-se ao violão durante a noite e, de dia, percorria os corredores dos estúdios de rádio e das gravadoras, à procura de um difícil lugar no mercado musical brasileiro. A bossa-nova decaía; o 'samba de protesto' não chegava a ser tão popular assim; os sambas-canção de Adelino Moreira continuavam sendo campeões de vendagem como há dez anos atrás; a música importada, como sempre, continuava muito bem obrigado; e Carlos Gonzaga gravava versões - assinadas por Fred Jorge - de baladas americanas de muito sucesso em todo o mundo ocidental.
Um belo dia, num passe de mágica ou por obra de um inteligentíssimo esquema publicitário e promocional, o obscuro cantor de bossa-nova explodiu com o retumbante sucesso de 'Quero Que Vá Tudo pro Inferno'. Era um novo tipo de música, que assimilava diretamente o rock, com uma letra nova, usando uma linguagem supostamente jovem e até considerada 'alienante' por algumas tendências da música popular. A nova poesia da Jovem Guarda abordava o dia a dia de uma forma mais realista, colocando ao alcance do ouvinte o carrão, o sinal de trânsito, o beijo no cinema, a festa do Bolinha. Já não havia mais lugar nem para a mulher terrível, a anima destruidora dos corações apaixonados; nem mesmo para a musa inteligente, sensível e graciosa da praia de Copacabana. A poesia se fazia, agora, para a 'garota legal', a 'mina papo firme'. E de nada adiantaram os protestos que efetivamente se levantaram contra o novo movimento. As correntes mais progressistas, comprometidas com a narrativa da 'realidade brasileira', com o protesto político estudantil pedia a 'radicalização' da MPB, através de letras que criticassem o status quo.
Mas a aceitação pública fulminante da 'turma de Roberto', com sua nova maneira de cantar e de se relacionar com o mundo, em breve criou um impasse: era preciso reconhecer que -  se a Jovem Guarda havia sido algo de 'artificial' na cultura brasileira - chegara um momento em que ela passara a ser, efetivamente, representativa da nossa juventude, de seu modo de falar, de se vestir, de se comportar. Os poetas dedicados à 'temática social', sem se aperceber disso na época, estavam sendo forçados a buscar novos caminhos, pois seu exíguo mercado - o estudantil - esgotava-se com o esgotamento do próprio movimento estudantil, enquanto força de manifestação política.
Foi exatamente esta busca de caminhos novos - através de festivais de música popular, da pesquisa de' raízes', etc - que levou à aparição de uma tendência efêmera, mas muito importante para o desenvolvimento posterior das letras de MPB. O Grupo Baiano, composto por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, José Carlos Capinam e Torquato Neto, inspirado no movimento modernista de 1922 e na 'antropofagia' de Oswald de Andrade, lança em meio a vaias e aplausos, o Tropicalismo.
Na mesma época, sem dúvida nenhuma, nomes como os de Vinícius de Moraes e Chico Buarque (grandes poetas da MPB, reconhecidamente), faziam muito sucesso, ao lado de tudo o que era notícia, como o Tropicalismo. Mas o que no Grupo Baiano fez, com seu movimento, significou muito para os caminhos da MPB daí por diante e, certamente, influenciou até mesmo o encaminhamento dos trabalhos posteriores de Chico e Vinícius.
Muito se escreveu a respeito das letras das  canções tropicalistas. E, hoje, quase 15 anos depois, os seus criadores se referem ao movimento como águas passadas, quase sem importância. Mas, na realidade, do ponto de vista da poesia, o tropicalismo revolucionou os valores tradicionais vigentes na MPB. E, nesse sentido, deu um dinamismo maior à poesia brasileira cantada, abrindo novos caminhos, descobrindo novos horizontes. Dentro da postura modernista, cantava-se uma brasilidade auto-crítica e bem-humorada, a partir de uma linguagem compacta e forte em simbolismos, que ia se buscar nas mais expressivas tradições da cultura popular (Voz do morro/pilão de concreto/ Tropicália/Bananas ao vento).
Justa ou injustamente confundida com um movimento de protesto, a Tropicália chegou a seu fim juntamente com a oposição ao segundo governo da Revolução, não sem deixar um forte rastro atrás de si que provocou uma importante evolução formal e de conteúdo na poesia popular musicada. "

(continua)

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