Palavras Domesticadas

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sábado, 12 de novembro de 2016

Novos Baianos - Revista Pop (1975)

Em 1975 os Novos Baianos passavam por uma reformulação, com a saída de um de seus principais integrantes: Moraes Moreira. Com Pepeu assumindo a direção musical, antes ocupada  por Moraes, a banda continuava sua bela trajetória na música brasileira. A revista Pop nº 36, de outubro de 1975, trazia uma matéria assinada por Carlos Eduardo Caramez sobre os Novos Baianos, intitulada "Do chorinho ao rock, uma salada tropical'. O texto de apresentação da matéria diz;
"Conjunto de rock, bloco de carnaval, time de futebol. Eles são tudo isso e mais o que você quiser. E quando tocam não há quem resista: o sangue ferve, o corpo começa a gingar, tudo vira uma saudável loucura com sabor tropical. Vivem em comunidade, o que é de um é de todos. Curtem samba, rock, chorinho, futebol, frutas, crianças e muito amor. Levam  a vida como uma grande curtição, onde é preciso saber dar o drible certo na hora precisa, segurar a barra com jeito quando não há jeito, soltar o corpo na dança para não dançar. E é misturando guitarra com surdo, baixo com frigideira, cavaquinho com tamborim, que dão a melhor receita para o rock tupiniquim."
Abaixo, a matéria:
"Antes, eles eram simplesmente baianos, curtiam bossa nova e jogavam futebol pelas ruas de Salvador. Galvão, um poeta, era um dos poucos cabeludos do pedaço, já no começo dos anos 60. Moraes, compositor, morava na pensão de dona Maritó, no Largo 2 de Julho. E foi pela mão do compositor Tom Zé, um dos pioneiros do tropicalismo, que os dois se encontraram. Ligação instantânea: Galvão juntou seus pertences numa trouxa e foi dividir o quarto de pensão com Moraes.
 Nessa época, a Orquestra Avanço fazia o circuito de bailes pelo interior baiano, às voltas com um crooner que insistia em cantar bossa nova quando a regra era o samba tradicional. Era Paulinho Boca de Cantor, que em pouco tempo estava dividindo ideias, vontades e quarto com Galvão e Moraes. Baby Consuelo apareceu na frente deles como uma alucinação: um espelho na testa, calça Lee toda remendada, falando das barras pesadas de Salvador e garantindo que tinha vindo ao mundo para encontrar-se com Jimi Hendrix. Morava em lugar nenhum, no momento dormia embaixo de uma ponte.
Foi a terceira ligação imediata. E estava formado o núcleo do que seria o conjunto Novos Baianos, ou o Novos Baianos Futebol Clube, ou a Comunidade dos Novos Baianos, ou a Escola de Samba Novos Baianos, ou a Academia de Música, Ritmo e Dança Novos Baianos. Ou, o que você quiser, desde que se refira a um fantástico grupo de caras que percorreu todos os caminhos tropicais, do chorinho ao rock, para inventar um som contagiante, tipicamente brasileiro, incrivelmente cheio de ritmo e feitiço.
O próprio nome do grupo pintou como um passe de mágica. Eles estavam entrando no palco da TV Record, em 1969, para defender a música De Vera num festival. E ainda não tinha nome. No meio da zoeira, alguém gritou: 'Com vocês, os Novos Baianos!' E o nome ficou. Em pouco tempo, eles já estavam conhecidos em todo o Brasil, De Vera virou sucesso e pintou a grana. 'Foram tempos incríveis', diz Galvão, 'a gente andava com os bolsos cheios de dinheiro sem saber o que fazer. Mandamos buscar amigos na Bahia, a coisa ficou esquisita. A gente se sentia como turista de primeira classe conhecendo a cidade grande.'
Alugaram um apartamento de cobertura, e dentro dele cada um construiu seu mocó. Colchas, retalhos, coisas que iam pintando viravam decoração. E foram chegando mais amigos, ligados pela necessidade de repartir carinho de viver junto, de fazer música e jogar futebol. Tudo dividido numa boa, tudo sendo de todos, tudo funcionando em regime de comunidade.
O som do grupo, a essas alturas, refletia a barra da loucura, a transa de muita gente pirada vivendo junta: era pesado, pauleira mesmo, coisa de dar na cabeça de todo mundo. Mas, entre os que estavam chegando, pintou João Gilberto, o mestre violeiro e cantor da bossa nova, o cara que sempre foi ídolo e mito para os baianos, novos ou antigos. O apartamento ficou pequeno e eles foram para um sítio, em Jacarepaguá.
É Galvão que conta: 'O João Gilberto botou a gente no caminho de casa. Ele nos estimulou a procurar o que estava bem dentro de nós mesmos, com toda a simplicidade. Foi um toque incrível.' E foi mesmo: a barra, em Jacarepaguá, evoluiu da loucura para o clima de bagunça organizada. O futebol passou a ser uma atividade de curtição e relaxamento, a música cresceu em harmonia e simplicidade. Os Novos Baianos inventaram um estilo de som, de vida e de comportamento: 'Morar junto, para a gente, significa ter a vida em toda  sua plenitude consciente. São mais problemas, mais soluções, mais derrotas, mais tudo. E morar no campo ou na cidade é o mesmo papo. A cuca estando legal, a gente saca o que há de bom e ruim em cada lugar. Na cidade, a gente pode estar também no campo.
Foi em Jacarepaguá que o guitarrista Pepeu, assumindo com honestidade suas raízes de chorinho e samba, eletrizou cavaquinho, bandolim e guitarra, e formou um vibrante regional, A Cor do Som, para servir de base à música simples e verdadeira do grupo. Foi aí também que pintou Acabou Chorare, canção nitidamente influenciada por João Gilberto, que acabou dando nome a um disco cheio de ritmo, dengue e simplicidade. E foi também aí que o futebol ganhou nova dimensão para todos: 'A gente assimilou que o futebol é a vida, uma grande confusão igual ao mundo. Você tem que estar sempre inventando, porque o adversário já sabe tudo. É importante usar o drible, não só no futebol, mas em tudo que a gente faz. Não fosse o drible, estava todo mundo parado...'
Logo, o futebol para eles não é apenas passatempo: é quase um ritual sagrado, onde há massagens em silêncio antes de entrar em campo, concentrações com jogos de sinuca e pingue-pongue, análises de esquemas de jogo. E cada partida é como uma decisão de campeonato: jogam pra valer. 'E, além do mais, o futebol nos dá preparo físico. É o elixir da longa vida, deixa a gente sem barriga, enxuto, gostoso mesmo.'
Muita gente boa já passou pelo grupo, que funciona como uma escola de música e futebol: Odair Cabeça de Poeta, do Grupo Capote; Pedrão, do Som Nosso de Cada Dia; Dadi, hoje com Jorge Ben; Moraes, trabalhando sozinho. Mas essas deserções não comprometem a transa: 'Podemos ser quatro, seis, dez, vinte. É mais uma questão de estado de espírito que de número'. Hoje são doze: Galvão, Paulinho e Marília, Pepeu e Baby, Jorginho, Didi, Bolacha, Charles, Baixinho, Salomão e Geraldão. Mais quatro crianças: Gil, Buchinha, Riroca e Zabelê. Estão em São Paulo, mas querem subir a América Latina até os Estados Unidos. E se a barra pesar? 'A gente já segurou barras que davam pra pirar metade da humanidade. Não temos medo.' "


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