Em julho de 1990 o Brasil perderia um de seus artistas mais representativos, um ícone do rock nacional dos anos 80. Cazuza nos deixaria, após um longo martírio em sua luta contra a aids. O país acompanhou a enorme luta e a irreverência de Cazuza diante da iminente morte, numa época em que os recursos da medicina no combate à sua doença ainda eram precários. Lembro de receber a notícia de sua morte no Jornal Nacional, e foi impossível segurar a emoção, mesmo sabendo que sua partida era certa, esperada e fatal. Na ocasião o jornal O Pasquim trazia uma matéria sobre Cazuza, escrita pelo crítico Roberto Moura, também morto prematuramente. O texto que segue abaixo é intitulado "O poeta de palavras vivas":
"Difícil aceitar que uma luz como Cazuza possa se apagar, assim, como uma vela. E necrológio de amigo, nem pensar. Quieto, no escritório, ouvindo suas músicas, folheio algumas das frases que escrevi sobre ele, nos últimos meses. Frases que davam conta da gravidade do seu estado, mas ainda eram carregadas de esperança. E que eram mais sinceras justamente por isso, pela possibilidade de nos encontrarmos outra vez na noite, que é uma criança, e derrubarmos mais uma dose de uísque.
Socorro-me nessas frases, sem nenhuma pretensão de que elas tenham o dom de sintetizar a obra de Cazuza ou delimitar o seu verdadeiro espaço neste espectro tão vago e variado a que chamamos música popular brasileira. Não é tarefa tão simples, nem para dias penosos. É para quem estiver distanciado no tempo, no espaço e na emoção. Para quem for capaz da precisão cirúrgica, do desvelo científico. Estou fora dessa. Vale o escrito:
Vítima de doença grave, Cazuza acordou, de repente, de uma adolescência quase superficial para uma maturidade a fórceps. Pouco antes de fazer trinta anos, viu-se obrigado a conviver com a dura realidade de que seu corpo é frágil demais para uma cabeça tão viva. O Cazuza de Pro Dia Nascer Feliz não existe mais. Em seu lugar está um homem que viu a morte de perto e não se avexa de escrever no encarte do disco: 'quando eu queria mudar o mundo, meu carro vivia cheio de gente." (O Dia, 25/04/88, quando do lançamento do álbum Ideologia).
Se há um nome da música popular capaz de sintetizar o que foi o ano da Constituição, da morte de Chico Mendes e dos operários de Volta Redonda, da ascensão do PT, do recorde inflacionário e da tragédia do Bateau Mouche, este nome é Agenor de Miranda Araújo Neto. Numa palavra: Cazuza. O artista imolado quase diariamente frente às câmeras e microfones, o mártir a ser oferecido em holocausto as agruras de toda uma geração, fecha a folhinha e dá um recado: vai bem obrigado. (O Dia, 01/89, a respeito do especial de fim de ano da Rede Globo).
Cazuza não tem jeito nem vocação para burocrata da canção. Nasceu inquieto, buliçoso, instigado e com uma forma toda própria de transar o mundo, a pátria, a família, a liberdade e a sua geração. O Tempo Não Para não é só uma reflexão social, nem aceita o perfil do poeta romântico criando em meio a crises de hemoptise. O Tempo Não Para não é divagação metafísica , metereológica, fatalista. É uma explosão poética de amplo alcance, que permite a Cazuza falar de mim e de você, do Brasil e do mundo, enquanto fala dele próprio apenas. Há Mallarmé: 'mas se você acha que estou derrotado/saiba que ainda estão rolando os dados'. E há, mais que tudo, um sincero desapontamento com todas as vanguardas: 'eu vejo o futuro repetir o passado/ eu vejo um museu de grandes novidades'. (...) Nilo Romero - que fez a direção musical do show - e Ezequiel Neves, que o rock roubou ao jornalismo, assinam a produção. Assinam a rigor, um momento de história. (O Dia, 23/01/98, sobre o álbum ao vivo O Tempo Não Para)
Tchau, Cazuza."
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