Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Eu Comi a Merenda de Zé Carlos e Neguei - João Ubaldo Ribeiro


A revista Careta, que circulou nos anos 80, trazia uma sessão chamada "Minha Escrotidão Inesquecível", onde uma personalidade confessava um deslize, uma babaquice ou um ato pouco louvável de sua vida. Em sua edição de julho de 1981 a revista trazia um depoimento do escritor João Ubaldo Ribeiro, relembrando um episódio de sua infância. Segue abaixo sua narrativa:
"No jardim de infância dirigido por Dona Bebé, em Aracaju, por volta de 1946, o costume era a gente levar de casa nossas lancheiras, com um sanduíche ou dois, um refrigerante ou então um chocolate quente na garrafa térmica (que lá se chama 'quente-frio'). Algumas classes eram organizadas, na hora da merenda. A professora mandava buscar as lancheiras e distribuía as merendas nominalmente, uma por uma. Outras clases, contudo, eram mais esculhambadas: empilhavam as lancheiras na mesa da professora e o pessoal avançava.
Não foi assim que, por engano - porque sempre fui meio abestalhado - entrei na classe de meu amigo Zé Carlos, que era do tipo 'avançar'. Não reparei nada. Pensei que o sistema tinha mudado e avancei também. Peguei o primeiro pacotinho e bagunhei. Era pão com goiabada. Mendei ver. Futuquei mais na lancheira, achei um quente-frio meio diferente do meu, mas tomei de qualquer jeito. Era laranjada.
Eu já tinha quase acabado a laranjada e o pão com goiabada, quando, no meio da confusão, vejo o Zé Carlos diante de mim, e apontando a merenda dele, que eu praticamente já devorara. Zé Carlos - terrível agravante - era um menino ótimo, que morava perto de mim e me fazia favores, emprestava coisas e quebrava galhos.
- Você comeu minha merenda! - berrou ele.
- Mentira sua! - disse eu, com todo o cinismo.
E, engolindo calmamente o último pedaço de pão com goiabada, marchei em compasso lento para a porta como um desses pistoleiros que se evadem sem precipitação, andei para a minha sala, ainda peguei minha própria merenda (sanduíche misto e chocolate) e não tive remorsos. Quando Zé Carlos se queixou, neguei tudo com veemência, fiquei ofendido. A história era inverossímil, a professora dele não queria admitir que não estava fiscalizando a classe. Todo mundo me deu razão, até hoje eu passo de bonzinho lá. A verdade é esta.
Não tenho a mínima justificativa para minha atitude. Foi uma coisa que deu em mim."

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