Em Cartola convivem harmoniosamente, o elegante músico e o poeta acurado. De um lado, o cultor de sambas de preferência lentos, de harmonia trabalhada e ritmo sutil. E com ele, o escritor de imagens filosóficas, banhadas em acentuado misticismo, boa dose de resignação e outro tanto de alegria de viver, indispensáveis a uma sobrevivência árdua como deste herói proletário. Afinal, com essas armas, na prática, ele conseguiu furar todos os bloqueios e dissimuladas hostilidades, projetando sua arte num meio intelectual acentuadadamente elitista.
É certo que não se trata de um iconoclasta, demolidor de mitos, formas ou conteúdos. Ao contrário, Cartola é um clássico que raramente deixa escapar uma imagem mais crua como as rudes cenas de "O Que É Feito De Você", onde deplora a perda da mocidade. "E hoje quando passo/ A gurizada pasma/ Horrorizada/Como quem vê um fantasma/ E um esqueleto/Humano assim vai cambaleando/ Quase cai não cai". Outra excessão é "Desfigurado", onde ele compara a infelicidade de seu coração "pobre e magoado" com a do "menor abandonado". Com maior frequência, no entanto, as músicas de Cartola (que tanto pedem flautas e cavaquinhos, quanto violinos e oboés) desenrolam seus atos num cenário quase matafísico, onde se discute Deus, a vida, a morte, amores e ódios. Ou, em resumo, as desventuras e os prazeres da arte de viver, para a qual Cartola ostenta o diploma duplo de filósofo e aprendiz.
"Semente de Amor" - Este experimentado pensador descobre uma imponderável relação entre as coisas que previsivelmente "acontecem" ou não: "Vai chorar, vai sofrer e você não merece/ Mas isso acontece (...)". E fatalmente conclui que "o mundo é um moinho e vai reduzir as ilusões a pó". Nada como um dia após o outro afirma "O Sol Nascerá" (Finda a tempestade o sol nascerá). E qua as aparências enganam: "Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre/ O meu sorriso é por consolação/ Porque sei conter pra ninguém ver/ O pranto do meu coração".
Candidamente, o sincero poeta admite a fragilidade da tese do amor único e eterno: "Tive sim, outro amor antes do teu/ Tive sim". Mas prefere calar, porque não pretende magoar sua nova paixão. "Semente de amor desde nascença", como confessa num verso de concisão extrema, Cartola termina por entregar sua solidão às rosas: "Que bobagem, as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti". Tantas decepções e frequentes voltas à realidade poderiam alistar o cético Cartola entre os trovadores da amargura e do pessimismo. No entanto ele tem fé (Grande Deus) e professa a modesta alegria do sambista de morro: "Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre, como podes Mangueira cantar?/ Mas então saibas que não desejamos mais nada/ À noite a lua prateada".
Parecem estreitos estes limites poéticos que desfilam pelos três elepês do compositor. No entanto, eles bastariam ao Mestre Cartola para que passasse de pedreiro, gráfico, quitandeiro e vendedor ambulante ao artista reconhecido e convidado aos melhores salões. Uma trajetória de todo modo semelhante à que ocorreu ao próprio samba e que não escaparia às escuras - mas visionárias - lentes de Cartola, em parceria com Carlos Cachaça em "Tempos Idos": "Já não pertence mais à praça/ Já não é samba de terreiro (...) conseguiu penetrar no Municipal/ Depois de percorrer todo o universo". Enfim, missão cumprida.
Tárik de Souza (Veja - 18/10/78)
Olá,
ResponderExcluirMuito bacana a postagem!
Abraços,
Lu Oliveira
www.luoliveiraoficial.com.br
Obrigado por visitar meu blog. Um abraço
ResponderExcluirE faz tempo que o blog está na ativa! Cartola não é menos que ótimo.
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