Palavras Domesticadas

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sábado, 15 de setembro de 2012

A Primeira Vez Que Li Sobre Guinga

É engraçado, mas a primeira vez que eu li algo sobre o grande músico e compositor Guinga, eu achei que se tratava de um personagem ficcional. Em 1990, quando trabalhava e morava em Ubá/MG, em meus tempos de ferroviário, eu comprei um exemp-lar do jornal O Pasquim, e deitado na cama do quarto onde dormia, lembro-me bem, li a coluna de Aldir Blanc onde ele falava de um músico de quem eu nunca tinha ouvido falar. O que me levou a achar que fosse uma invenção de Aldir, apesar de em seu texto ele citar vários músicos conhecidos e mesmo títulos de composições, é que as referências ao até então para mim deconhecido personagem eram elogiosas demais, o que me levava a crer que um cara para receber tantos elogios e citações de gente famosa e de peso tinha que ser pelo menos um pouco mais conhecido. Outro fator que me levava a acreditar na tese do personagem de ficção é que a imagem que ilustra o texto (ver acima) era um desenho, podendo portanto, ser realmente fruto da inventividade de Aldir. O texto, intitulado "O Caso dos Irmãos Guinga" também parece título de um conto ( no caso "irmãos" se refere a dois personagens num só: o dentista e o músico). Só algum tempo depois eu vim a conhecer o trabalho de Guinga, e me certificar que ele é de carne e osso. Eis alguns momentos do texto de Aldir:
"Sou amigo e parceiro (nessa ordem) de um dos Irmãos Guinga, o compositor. O outro irmão, o Dr. Carlos Althier de Lemos Escobar, também é meu chapa, já esteve até aqui em casa recauchutando um canino avariado, mas nos relacionamos de modo mais formal, o que é compreensível: Tenho medo de dentista. O compositor é uma das maiores figuras de todos os tempos. Doidaço, suburbano até a medula, gozador e peladeiro emérito. Um espécime en extinção. Só tem um pequeno defeito: bebe pouco.
O negócio é o seguinte: se eu chegasse num boteco e dissesse que o Guinga é um dos maiores compositores brasileiros, ou botando mais pilha, um dos maiores compositores populares do mundo no século XX, sei que meus detratores começariam a balançar a cabeça com ar de "o que a bebida fez com esse rapaz..." E haveria os canalhinhas de sempre, com fachada novaiorquina e mente interiorana, me acusando de puxar a brasa pra minha sardinha. Então tá. No presente caso, os outros não são o inferno sartreano não. Muito pelo contrário. Os outros são minha defesa. Convido vocês ao estudo do retrospecto guingueano, assim como se estivéssemos de bobeira apreciando os cavalinhos. A comparação é proposital: o Guinga é um puro-sangue desses que só aparecem uma vez na vida.
Conheci o Guinga via Rafael Rabelo, um dos maiores violonistas do planeta. Fiquei impressionado com a admiração que o Rafa tinha pelo tal do Guinga, a quem ficara de trazer pra acertar uns papos comigo. Um dia, a figura, muito tensa, tocou minha temperamental companhia. Me arrasou com várias composições suas, letradas ao cubo pelo Paulo César Pinheiro, um poeta que me parece o legítimo sucessor de Vinícius. Babei na gravata. Eis alguns títulos que me abalaram até os ossos: Violada, Saci, Senhorinha, Sussuarana, Noturna. Mais tarde, algumas delas seriam gravadas em grande estilo por Amélia Rabelo. Miúcha matou a pau a alucinada valsa francesa Non Sense, um banho de letra do Paulinho Pinheiro, desses olés de fazer outro letrista pensar em mudar de profissão. São CENTENAS de músicas desses dois iluminados. Procurem ouvir Punhal, Valsa do Realejo, Cinto Cruzado, gravações da eterna Clara Nunes; Conversa com o Coração e Maldição de Ravel, com o MPB-4; Passo de assovio, que o Pepê Castro Neves interpreta com rara sensibilidade, arranjo do Legrand, meninos. E, pra aqueles que desejam bater com a cabeça na parede, Bolero de Satã, com a Elis.
No passado mais recente, Leila Pinheiro, Selma Reis e Itamara Koorax se apaixonaram pelo trabalho do Guinga. Turíbio Santos, um dos raros motivos de orgulho da gente ser brasileiro, me deu, por escrito sua fundamental opinião: Guinga é o primeiro a continuar, de fato e de direito - tchan-tchan-tchan-tchan! - ninguém menos que Villa Lobos! O magnífico Baden Powell acha que o Guinga é o nosso maior compositor em atividade. O rigorosíssimo Hermeto, terror dos enroladores, escalou Guinga pra participar de seus shows assim que o viu tocar dez minutos pela primeira vez. Oscar Castro Neves fez questão de conhecê-lo e quase perdeu o avião que o levaria de volta para Los Angeles. Paco de Lucia - é, o Paco - disse que nunca encontrara um compositor com quem quisesse trocar seu próprio universo musical pelo do outro, se pudesse, mas que toparia fazer esse avatar com o Guinga. Uma declaração dessas, vinda de quem veio, daria uma página de jornal em qualquer país civilizado. Aqui no jerk's paradise, lhufas, Moacyr Luz tem razão: em terra de ferradura, quem dá coice é rei."

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