Palavras Domesticadas

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domingo, 26 de março de 2017

Raul Seixas - Navegante dos Infernos e das Luzes (1975)

Em 1975 Raul Seixas estava na melhor fase de sua careira, já tinha lançado dois discos de grande repercussão e sucesso - Krig Ha, Bandolo (1973) e Gita (1974), e se preparava para lançar Novo Aeon, outro grande disco de sua carreira. Sua parceria com Paulo Coelho seguia firme, com ótimas composições, que além de trazer um teor filosófico, e às vezes social e anarquista, continha uma veia popular, que atingia as massas, e fazia seus discos alcançarem altas vendagens.
Na época, o crítico e jornalista Nelson Motta, em sua coluna diária no jornal O Globo falava de Raul e sua trajetória, em uma matéria intitulada "O Navegador dos Infernos e das Luzes":
"Nunca duvidei do talento desse astonishing Raul Seixas, embora algumas vezes não tenha entendido o que ele queria dizer; talvez porque ele não tenha sabido explicar ou eu não tenha sabido entender.  Mas nos píncaros dos delírios da Sociedade Alternativa foram poucos os que sacaram exatamente o que Raul pretendia mostrar e demonstrar. Mas sempre foram muitos, milhares, os que se encantaram com suas músicas. Nos subúrbios, nos programas de auditório, nos pedidos dos ouvintes, nas vitrolas 'inteligentes', nas cabeças doidas, nos selos da cocotagem-rock e nos pilares da MPB.
Crítico feroz, artista popular, anárquico, polêmico, dividido e dividindo, Raul Seixas emergiu de Raulzito, que no entanto são a mesma pessoa, 'que para aprender o jogo dos ratos/ transou com Deus e com o Lobisomem'.
Uma explosão com 'Let Me Sing'. Uma maneira diferente de dizer as coisas. Um humor crítico, uma interpretação teatral. Raul Seixas: 'eu sou eu/ Nicuri é o diabo'.
Mas logo muitos se preocuparam: 'Raul Seixas é indiscutivelmente um sucesso. Mas será Raul Seixas importante na música brasileira?'
Só Raul Seixas não deve ter pensado se era ou não importante na música brasileira, senão não teria tido tempo para fazer o festival demolidor que foi o seu primeiro LP. Literalmente uma pedrada em milhares de frágeis vidraças. 'Al Capone', 'Ouro de Tolo' (obra-prima popular), 'Dentadura Postiça'; uma torrente-quente-irreverente, um grito de guerra na linguagem do homem marcado - Krig Ha Bandolo!
Seu primeiro álbum era demolidor, pulverizava sonhos, desnudava.; com humor, ritmo, leveza e irreverência.
Já com o segundo - 'Gita' - surgido em plena efervescência alternativa, as músicas se colocavam de forma diversa diante dos escombros provocados pelas bombas incendiárias do primeiro trabalho - muito mais num sentido de indicar caminhos e opções de vida através de uma visão do homem feita quase em forma de pregação.
A diferença entre o primeiro disco e o segundo é a que existe entre um panfleto forte e incendiário e uma pregação cheia de promessas de grandeza. Um palavrão rabiscado na porta de um banheiro/ o homem rei do universo.
Talvez ainda existam mais coisas a serem destruídas que caminhos a construir, sobretudo em áreas definitivamente bloqueadas da sensibilidade popular, dos sonhos e mitos que castigam e enlouquecem.
É ótimo ouvir alguém dizer que 'eu que não vou me sentar no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar...' É ótimo ouvir alguém denunciar que um certo tipo de sonho só leva à frustração e amesquinhamento das aventuras do viver. É ótimo saber que houve muita gente que entendeu o que ele quis dizer e seguiu os conselhos dados a Al Capone: 'vê se te orienta!'
É encantador testemunhar um artista que conviveu e convive com o sucesso, ter total desprezo pelo êxito e encarar uma longa e certamente dolorida viagem aos infernos por sua livre vontade de conhecer seus lados escuros e viver de perto os mesmos sonhos de Raul Seixas - um moleque cósmico.
 Seu terceiro Lp está para sair. Ouvi alguma coisa dele ao violão e alguma coisa da fita não definitiva. A impressão mais forte é estar diante de um trabalho extraordinário, destinado a provocar fartas (e certamente equivocadas) polêmicas; um trabalho vivo e intenso. Literalmente vivido.
Raul enfrentou por sua conta e risco e por sua coragem ou loucura o mergulhar nos seus próprios abismos, vivendo o seu real e a sua fantasia com fidelidade e energia total, navegando certamente em mundos estranhos, provando o vinho e o vinagre da vida, conhecendo as sombras e as luzes que imaginava ou duvidava.
Seu novo disco parece ser isto: o diário de bordo de uma viagem longa e dolorosa com o próprio corpo, com a cabeça fazendo a navegação sem radar, em pleno nevoeiro, nos mares de fogo, nas chuvas de prata.
Agora Raul Seixas não apedreja, não doutrina. Ele agora conta, depõe na primeira pessoa, revela e revela-se, vai contar ao pé das lareiras eletrônicas as suas saisons en enter e suas ressurreições. Para ouvintes atônitos com a visão que ele tem de um dos auto-martírios prediletos da humanidade: o egoísmo.
O disco de Raul Seixas pode colaborar decisivamente para ajudar muita gente e desamarrar bodes turrões que teimam em atrapalhar a vida e a alegria das pessoas. Como as supra-citadas (e cheias de culpa) nações de 'egoísmo' que a civilização judaico-cristã legou. O disco talvez pudesse se chamar 'Teoremas - demonstrados e vividos pelo autor'.
Raul discute o tormento do ciúme de forma totalmente diversa da que os séculos ensinam, para espanto dos que buscam o sofrimento nas alegrias do amor. Para estupor dos que temem, para desespero dos que têm medo, para inveja dos que fazem o medo de perder maior que a alegria de amar. Otelos do Brasil, uni-vos, porque Raul Seixas vem aí com 'A Maçã', onde talvez pela primeira vez em sua geração, um compositor discute e depõe de forma tão aberta em relação ao ciúme, um dos pulmões das sensibilidades e dos valores nativos.
'Quando Freud explica, o Diabo dá o toque', adverte Raul no 'Rock do Diabo' e talvez aí esteja um dos seus momentos mais claros: em vez de colocar a psicanálise como panaceia universal ele prefere achar que Dr Freud tem sua grande importância mas as grandes soluções surgem quando os demônios são conhecidos, enfrentados ou adotados. Entre a explicação da angústia e suas fontes existem os abismos do medo de enfrentar a cachoeira que leva aos lados escuros - pela simples certeza que é de lá que pode surgir a luz, uma verdadeira e clara luz, uma verdadeira e clara luz do auto-conhecimento através da vivência real dos seus fantasmas. Isto foi o que Raul Seixas fez.
Dezenas de vezes ouvi dizer: 'Raul Seixas está louquíssimo. Intransável.' Muitos me disseram - 'Raul Seixas pirou de vez.' 'Raul Seixas acabou'.
But he is well, alive e leavinh the Hell, como um Rimbaud baiano iê iê balada romântica roquenrrow. Como um dos mais instigantes e inquietos criadores de sua geração. Zelosos guardiães da cultura brasileira, corcoveai; Raulzito vem aí, mais vivo do que nunca, pronto para - mais uma vez - fazer delirar a patuleia e as inteligentzias patrícias.
Que - ao som de Raul Seixas - vão se desfazer de seus líquidos venenosos num mesmo e comum turbilhão de espuma, tal como no poema de Vinícius..."


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