Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Ednardo Curtindo Até Os Defeitos - Jornal de Música (1976)

Em 1976 Ednardo vivia um momento peculiar em sua carreira. Havia lançado o disco Berro, e ao mesmo tempo vivia o sucesso de sua música mais conhecida, Pavão Misterioso, lançada dois anos anos antes. A inclusão da música como tema de abertura da novela Saramandaia, da Globo, acabou gerando uma situação inusitada: a música alcançou sucesso quando outro disco e outra proposta de trabalho vinha sendo elaborada pelo compositor.
Em sua edição nº 25, de outubro de 1976, o Jornal de Música em uma sessão chamada "Ao Vivo", que fazia resenhas de shows, Ednardo é destacado. Uma chamada da matéria em destaque dizia; "Sem plumas e sem mistérios, ele confessa que já está cansado de cantar o Pavão Miterioso". O texto é assinado por Aloysio Reis:
" 'Muitas vezes a gente fala uma coisa e as pessoas entendem outra. Eu estava fazendo um show lá em São Paulo, com um violão que não tinha trastes marcados por aquelas bolinhas. Como o Tárik disse no jornal, eu só toco violão pro gasto, então comecei a errar violentamente nos acordes e, numa hora de de desespero, eu disse - Sem bolinha não dá! Tá na cara que o pessoal entendeu outra coisa e, no final do show, veio um rapaz muito simpático e disse: - Eu tenho aqui uma coisa muito melhor do que bolinha.' (Bolinha é como se costumava chamar na época comprimidos de anfetamina).
As gargalhadas pipocaram em todos os os cantos do auditório do MAM. Sentado num dos velhos caixotes de cerveja que serviram de assento para os músicos, Ednardo também ria dessa piada tirada de suas próprias limitações como músico. E foi justamente essa postura conscientemente humilde e despretensiosa que permitiu uma ligação direta com o público capaz de tornar irrelevantes essas limitações que Ednardo transformou em piada.
Tanto na hora de largar o violão para controlar a sua mini-mesa de som, quanto na hora de confessar que já está de 'saco cheio de tocar e cantar o Pavão Misterioso', Ednardo dirigiu todo o clima da apresentação para um ambiente de bate-papo em varanda nordestina. Ele misturava músicas inéditas com as já gravadas no Berro e no Romance do Pavão Misteriozo, como se estivesse montando o repertório de improviso e talvez a presença de apenas três músicos no palco (contando com o próprio Ednardo) tenha ajudado a formar o clima necessário para suas canções, geralmente calcadas sobre a simplicidade dos cantadores do Nordeste com os naturais incrementos de sua vivência do Sul.
Quando o grupo interpretou a canção-homenagem que Ednardo fez em memória da heroína cearence Bárbara, que tentou proclamar a República antes do tempo e acabou morrendo em uma masmorra de Fortaleza, formou-se um clima estranho, quase místico, como se os fantasmas invocados na música estivessem marcando sua presença. E é importante lembrar que toda essa concentração em torno da letra ocorreu com um público heterogêneo que incluía adolescentes, universitários e tímidas donas-de-casa que queriam apenas ver de perto o autor da trilha de Saramandaia.
Talvez para romper com a monotonia de cantar sempre o Pavão Misterioso, Ednardo interpretou uma boa parte da música com letra em espanhol, dando um toque novo também nos arranjos dessa música e no hino dos novos (?) compositores cearenses - A Palo Seco - que teve que cantar dentro de um coro de mais de duzentas vozes, já que a plateia - nem sempre muito afinada - fez questão de cantar com ele.
Como Ednardo conseguiu uma temporada boa como essa, em condições absolutamente precárias de produção? Sorte, milagre ou estratégia bem sucedida? Eu tenho um palpite: acredito que a mania das superproduções em palco e do exibicionismo de técnica instrumental já tenha atingido sua consequência natural, que é provocar a saturação num público que vive numa realidade que não tem nada a ver com  essas superproduções. No palco do MAM não estava a figura do novo vendedor de discos (200 mil compactos do Pavão e mais uma quantidade expressiva de LPs) projetado pela trilha sonora de uma novela de TV. No palco do MAM estava apenas a figura de um vigoroso cantador cearense invocando os fantasmas de sua terra, emocionando todo mundo com a simplicidade e sinceridade de seu trabalho, e fazendo charme e piada com o fato de não ser um virtuose e nem mesmo uma estrela. "

2 comentários:

  1. Eu estava nesse show no MAM e, realmente, estes comentários me fizeram reviver os momentos.

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  2. Pela matéria deu pra ver que foi um show da melhor qualidade, sem uma grande e cara produção, mas como muita criatividade. Bom ter a sua testemunha de quem estava lá. Abraço

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