Palavras Domesticadas

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terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Billie Holiday - Rainha do Jazz, Mártir do Amor e das Drogas (1980)

Billie Holiday sempre será lembrada como uma das mais importantes intérpretes do jazz, e também por sua vida atribulada e sofrida. O Jornal do Disco, um tabloide que vinha encartado na revista Som Três, em sua edição nº 16 (abril de 1980) trazia uma matéria não assinada sobre a grande diva do jazz. Segue abaixo o texto:
"Sempre quando se escreve a história dos grandes protagonistas da música negra norte-americana, o nome de Billie Holiday aparece com destaque na seção 'cantoras de jazz'. Na verdade, porém, mais do que a maior cantora de jazz de todos os tempos, ela foi uma espécie de instrumentista. Afinal, foi com sua voz maleável e de timbre inusitado que marcou, de forma indelével, uma influência sobre toda a música instrumental produzida depois dela.
No dia 7 de abril de 1980 se comemora o 65º aniversário da cantora, que, além de ter influenciado toda a música instrumental posterior a ela, foi também a estrela por excelência, do disco. Apesar de haver impressionado a músicos, críticos e especialistas em seus shows em boates, teatros e até botequins, ela foi sempre - e de forma definitiva - 'a' artista da indústria fonográfica, em sua fase inicial e em seu mercado capital, os Estados Unidos da América.
Morta há 21 anos, Billie Holiday é uma lenda do jazz. Mas a história real de sua vida, marcada por sofrimentos provocados seja por sua beleza estonteante, seja pela infelicidade de seus casos de amor, mas principalmente pela discriminação racial e pelo invencível vício das drogas, basta para explicar todo o sentimento que ela conseguia emitir junto com sua voz, de uma beleza ainda indecifrável e, sobretudo, estranha.
Essa história começa quando o guitarrista Clarence Holiday, membro da famosa orquestra de Fletcher Henderson, um dos reis do swing, conheceu e amou Sadie Fagan, uma empregada doméstica de apenas treze anos de idade. Da união nasceu Eleanora, aos dez anos tornada órfã, uma vez que Clarence largou Sadie e  passou a viver com outra mulher. Não foi uma infância fácil: Eleanora Fagan nasceu e se criou  no gueto negro, uma favela de Baltimore e lá foi obrigada a defender seus primeiros níqueis para comprar o pão necessário à sobrevivência.
Nora, como a mãe, depois sua melhor e mais constante amiga e companheira, a chamava, limpava as soleiras de mármore dos brancos da cidade em troca de algumas moedas. Mas o fazia gratuitamente para Alice Dean, proprietária de um bordel a poucos metros da casa onde morava. Miss. Dean tinha um velho fonógrafo e nele a menina ouvia, deslumbrada, os discos de Bessie Smith e de Louis Armstrong, suas influências decisivas.
Louis Armstrong, o Satchmo, não foi apenas o grande trompetista, mas também a personalidade mais genial e  o vocalista pioneiro do jazz da época. Com sua voz rouca, cantou pela primeira vez os scats, sílabas onomatopeicas  em lugar das letras das canções, verdadeiras garatujas vocais que se transformaram na marca registrada dos cantores de jazz. Bessie Smith, uma negra gorda, cantava blues com  a marca do sofrimento de alguém, cujos ancestrais haviam sido transportados da África para  o Novo Mundo amarrados em grilhões nos porões de navios de escravos.
Outra influência definitiva no estilo de Billie Holiday foi o destino, marcado por uma série de sofrimentos que nada poderia apagar. Aos dez anos, ela fora violentada por um pensionista de sua mãe e, por ser negra, acusada de 'corrupta' e levada a um reformatório, onde, de castigo, se vira obrigada a passar a primeira noite em companhia de um cadáver de uma coleguinha. Dois anos antes, já tinha sido tratada por psiquiatras, por causa do trauma provocado pelo abraço forte de uma bisavó, na agonia final da morte.
No Harlem, bairro negro de Nova Iorque, para onde se mudara com Sadie, Eleanora Fagan conheceu a fome de forma mais cruel. E, para sobreviver, prostituiu-se. Viciada em heroína, a pequena prostituta de quatorze anos, com o rosto e o corpo de uma belíssima mulher de vinte, foi várias vezes presa e começou a cantar justamente para não ter que voltar à prostituição. Um dia, com muita fome e frio, andou quase toda a Sétima Avenida pedindo um emprego, até que se ofereceu como dançarina a Jerry Preston, proprietário do The Log Cabin Club. Mesmo malcheirosa, cantou Trav'lin Light e Body and Soul de forma tão irreparavelmente emocionante que os frequentadores do botequim de Preston não resistiram e choraram.
Foi um golpe de sorte. O bar era frequentado pelos grandes nomes do jazz da época, caso do clarinetista Benny Goodman e de seu cunhado John Hammond, o fabuloso descobridor de talentos da música popular norte-americana, o mesmo que, quase trinta anos depois, traria à luz Bob Dylan. Quando Hammond a ouviu pensou estar diante de uma Bessie Smith remoçada e logo levou a garota  de dezessete anos para gravar 'Your Mother's Son-in-Law' com a orquestra de Benny Goodman, uma das mais famosas big bands do jazz naquele ano de 1933.
O conhecimento definitivo, porém, foi com o pianista Teddy Wilson, protegido de Hammond e frequentador do bar de Jerry Preston. Com seu grupo, formado pelos maiores instrumentistas de jazz de então, Billie Holiday gravou momentos antológicos da música americana, como 'Solitude', 'Body and Soul', 'Me, Myself and I', 'Georgia On My Mind' e muitos outros, conservados em sua pureza, até hoje, por discos de best-sellers da Columbia.
A bela moça que só se apresentava de branco, a rigor, com uma gardênia branca enfiada no cabelo, adotara o nome artístico de Billie (em homenagem a sua atriz de cinema favorita, Billie Dove) Holliday (sobrenome do pai músico) e era  a coqueluche dos jazziztas de Nova Iorque nos anos 30. Nem por isso seus sofrimentos haviam acabado. Os amores se sucediam e todos os casamentos foram infelizes. O vício pela heroína e levava à prisão constantemente. E a discriminação racial quase a levava à loucura: crooner de Count Basie em 1937 e 1938, era obrigada a usar cosméticos especiais para escurecer o tom de sua pele, cor de cobre, para que os espectadores não pensassem que era a cantora branca de uma orquestra de negros. Em 1938, excursionava com  a orquestra do clarinetista branco Artie Shaw e era obrigada a usar a porta de serviço, enquanto os músicos entravam pela porta principal dos teatros. As portas dos hotéis centrais, onde a big band se hospedava, estavam também fechadas para ela, obrigada a se hospedar em espeluncas de subúrbio.  Além disso, não conseguia vencer a batalha contra a obesidade.
Já havia conhecido, então, o grande sax-tenorista Lester Young, com quem viveu um tempestuoso caso de amor e com quem se entendeu como jamais houvera acontecido com outro músico, a não ser, talvez, com Teddy Wilson. Nas gravações de 1934 a 1939, em que os dois participam, é difícil distinguir em que ponto termina o solo da canção e em que nota começa o solo do sax-tenor, tamanha é a integração entre os dois. Young e Holiday estavam, naquelas gravações, lançando a pedra fundamental do jazz cool (que desembocaria na bossa-nova e na música instrumental de vanguarda de Miles Davis, nos anos 50 e 60). A cantora, com seu fraseado sem compasso, transformava cançonetas fáceis (sucessos populares como 'What a Little Moonlight Can Do') em verdadeiros clássicos do jazz. Quem a viu cantar então nunca deixou de escrever: 'O jazz começou a cantar com Billie e nunca voltará a cantar como ela fazia.'
Nem mesmo ela. Seu nome mudara da seção de variedades para as páginas policiais dos jornais, tantas eram as prisões por uso de drogas e tamanhas as confusões em que se metia. Os casamentos com Jimmy Monroe e Louis McKay não deram certo. A cantora que filmara New Orleans, em 1946, já estava com o timbre da voz escurecido, em relação à que fizera Symphony in Black, em 1935. Mas continuava. Gravou para a etiqueta de Norman Granz, e viajou duas vezes à Europa, a primeira das quais com a troupe de Leonard Feather.
Seus últimos concertos, contudo, eram uma agonia. Ela se esquecia das letras, se perdia na melodia e não tinha mais a voz flexível da juventude. Cantava no último deles, no teatro Phoenix, a 25 de maio de 1959, quando foi levada ao Metropolitan Hospital, em Manhattan, com sérios distúrbios hepáticos e cardíacos. A última das humilhações estava por vir: foi presa no hospital. Mas de lá não sairia. Morreu no dia 17 de julho, com pouco mais de 44 anos de idade. Quando perguntaram a um amigo de que ela tinha morrido, ele deu a mesma resposta que fora dada, a respeito da morte do grande trompetista branco Bix Beiderbecke: 'Ela morreu de tudo.'
Mas quem ouvir suas gravações de 'Let's Call The Whole Thing Off' - só para dar um exemplo - nunca poderá esquecer que ela viveu. E ainda vive. Em tudo o que de melhor se produz no jazz no mundo inteiro. "


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