Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O Pasquim Fala da Morte de Pixinguinha (1973)

Pixinguinha é um personagem eterno em nossa música. Considerado por muitos como a figura mais importante da música brasileira, um conceito sempre sujeito a questionamentos, devido ao grande número de gênios musicais que possuímos, Pixinguinha nunca foi totalmente esquecido, mesmo nesse país que tão pouco reverencia seus grandes personagens. Compositor dos mais inspirados, criador de clássicos que se eternizaram, e excelente flautista e saxofonista, Pixinguinha sempre é lembrado por sua simplicidade, a ponto de muitos que  o conheceram o chamarem carinhosamente de "São Pixinguinha", conferindo-lhe uma santidade, em virtude de sua personalidade. Pouco tempo após sua morte, em fevereiro de 1973, o jornalista e crítico musical Sérgio Cabral escreveu uma crônica em sua homenagem, na edição nº 191 de O Pasquim, intitulada "O maior de todos". A matéria trazia uma ótima caricatura do músico, de autoria do cartunista Redi, que ilustra também essa postagem. Segue a matéria:
"Terminado o programa Domingo é da Guanabara, na TV Itacolomi, em Belo Horizonte, a gente ia para um restaurante (o nome, se não me engano, era Califórnia) jantar. Meia-noite, meia-noite e meia, a gente chegava, embora o restaurante estivesse fechando. Mas o dono era boa praça, deixava um garçom à nossa disposição, e lá ficávamos até amanhecer.
Aquela noite era especial: a minha estreia como autor do script do programa (produzido pela Agência Squire) que não precisava dar IBOPE, segundo recomendações do patrocinador. Ele queria um programa que ensinasse música popular brasileira ao público. E a estreia foi justamente com a presença de Pixinguinha, Donga, João da Baiana e todo o pessoal da Velha Guarda. Resultado: Fred Chateaubriant, diretor da TV Itacolomi, telefonou dando ordens para prosseguir e deixar de apresentar o que viria em seguida; deu 90 pontos no IBOPE.
No restaurante, depois do jantar, os velhinhos começaram a tocar. E tome chorinho, samba, valsa, um show de quase  quatro horas para uma meia dúzia de pessoas. Lá pelas tantas, o garçom pediu a Pixinguinha:
- Toca Lábios que Beijei.
E Pixinguinha tocou no saxofone. Entre uma frase e outra, tirava o instrumento da boca e comentava:
- Isso é do meu amigo J. Cascata.
J. Cascata havia morrido há pouco tempo. Era o mais jovem integrante do Conjunto da Velha Guarda e um grande compositor das décadas de 1930 e 1940. De repente, vi Pixinguinha chorando sem parar de tocar. O sopro lhe saía suave, sentido e doce e ele chorava. Nunca mais esquecerei a cara de mestre Pixinguinha chorando e tocando Lábios que Beijei.
No dia seguinte, pela manhã, estávamos no bar do aeroporto de Pampulha aguardando o avião para voltarmos pro Rio, quando Pixinguinha descobriu que a cachaça era servida numa garrafa com um troço no gargalo, de plástico, sanfonado, com uma biquinha. O cara comprimia de cima pra baixo e a cachaça escorria pela biquinha. Embora sem beber cachaça há muito tempo (já havia aderido ao uísque), Pixinguinha consumiu toda a garrafa só para ver o aparelhinho funcionando. Ele era também uma criança.
Essa viagem a Belo Horizonte foi uma das primeiras coisas que me vieram a cabeça quando fui tirado do desfile da Banda de Ipanema pela notícia da morte de Pixinguinha. Vinha eu, com a camisa  do Vasco toda molhada pelo temporal que caiu durante o desfile, ligeiramente bêbado, quando o fotógrafo Walter Firmo me deu a notícia (eu desconfiava que depois da morte de Dona Beti, Pixinguinha não ia durar muito. Durou sete meses. Eles se amavam muito. Poucos dias antes dela morrer, Pixinga sofreu um distúrbio circulatório e foi internado no mesmo hospital onde estava internada. Para que ele não soubesse o que se passava, Pixinguinha colocava o terno nos dias de visita e ia conversar com Dona Beti como se tivesse vindo de casa).
Pixinguinha e Louis Armstrong
É bom que se diga uma coisa, agora que ele morreu: Pixinguinha é o nome mais importante de toda a história da música popular brasileira. Ele foi o inventor da orquestração da nossa música, foi um instrumentista genial e um compositor incomparável. Mesmo levando em conta a importância de um Ernesto Nazareth, um Noel Rosa, Ari Barroso, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Lamartine Babo, João de Barro, Haroldo Lobo, Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque de Hollanda, Baden Powell, Caetano Veloso e Gilberto Gil, nenhum deles tem a grandeza de Pixinguinha. E digo mais: Pixinga é do mesmo time daqueles brasileiros extra-classe tipo Villa-Lobos, Oscar Niemayer e Pelé.
Há quem se surpreenda quando alguém coloca Pixinguinha no seu devido lugar. É que ele não se comportava como um gênio. Era uma figura, por exemplo, muito difícil de se entrevistar. Para dizer a verdade, era péssimo de falar e até mesmo ingênuo. Pixinguinha, onde você mora?
- Na Rua Pixinguinha, 23.
Durante muito tempo, morou na rua que tinha o seu nome, o que jamais lhe impressionou. Tanto que se mudou de lá para Jacarepaguá e depois para um conjunto residencial na Estrada Velha da Pavuna, para onde um táxi lhe levava diariamente na saída do Bar Gouveia, que continuou frequentando, mesmo depois de ter deixado de beber.  Aliás, apesar de ser a grande atração do bar, pagava todas as suas contas. Em seu depoimento no Museu da Imagem e do Som, revelou que apenas uma vez bebeu de graça no Gouveia: quando Tom Jobim apareceu por lá e o dono do bar resolveu homenageá-lo colocando uma garrafa de uísque na mesa.
Os seus hábitos simples talvez tenham prejudicado a sua imagem de artista genial (e ele pouco ligava pra isso), mas agora, com sua morte, sugiro aos músicos brasileiros que deem uma olhada na sua obra. E desafio que digam se houve um músico brasileiro mais importante que ele."

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