Palavras Domesticadas

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Volta de Taiguara - Revista Música (1984)

Taiguara (1945-1996) foi um dos muitos artistas brasileiros vítimas da Censura Federal dos tempos sombrios da ditadura. A grande decepção que sofreu ao ver um de seus discos mais bem produzidos, Imyra Tayra Ipy, de 1976, ser recolhido das lojas sem maiores explicações, numa atitude típica de uma época de triste memória para o Brasil, fez com que esse grande criador buscasse um auto-exílio, e desaparecesse completamente do cenário artístico.
Após vários anos sem dar notícias, o que levava a várias especulações sobre seu paradeiro, só em 1984 Taiguara retornaria ao país, depois de percorrer vários países, e gravaria o disco Canções de Amor e Liberdade. Na ocasião, a revista Música trazia uma matéria sobre esse retorno de Taiguara ao mundo do disco, assinada por Marina C. M. Teixeira e Mello, e intitulada "Mais que nunca é preciso cantar":
"Para os amigos, uma atitude há muito esperada. Para os fãs, uma bela surpresa; para os críticos, a expectativa diante de novos trabalhos. Depois de um afastamento de 10 anos do público e das gravações, Taigura está de volta - e pra valer. Um disco lançado e outro em preparação, projetos de shows em grande escala e sobretudo uma vontade imensa de falar, de tirar a diferença do longo silêncio.
As razões da ausência vieram explicadas de forma lírica, numa de suas novas composições ('O Amor da Justiça') onde ele diz: 'Pois é, companheiro/ não dá pra ver tanta injustiça/ e estar a dizer 'eu te amo' pra alguém que não vê/ Por isso esses anos/ calado/ Por isso meus versos proibidos/ Por isso não houve notícia de mim pra você.'
Dos velhos tempos permaneceu o sorriso e a voz bonita. Aos 38 anos, Taiguara Chalar da Silva não mudou apenas no físico; no rosto marcado do homem maduro refletem-se os anos de exílio voluntário, imposto pela revolta e  impotência diante de uma censura que sistematicamente boicotava o seu trabalho. E seus olhos faiscam, enquanto ele recorda os fatos passados.
'Foi em 1973 que dei o meu grito de protesto, do único jeito possível: largando tudo e saindo do país. Não havia canais de denúncia, e todas as minhas composições eram vetadas pela censura prévia. As poucas que passavam vinham mutiladas, recebendo a indesejável 'parceria' dos censores... Depois de terem sido proibidas 44 músicas, desisti. não dava mais pra aguentar.'
Estava longe o jovem cantor dos grandes festivais, das noitadas românticas no famoso 'João Sebastião Bar', onde se apresentava com Claudete Soares e Geraldo Vandré, dos shows universitários de bossa-nova, ao lado de Toquinho e Chico Buarque. Mas algumas de suas composições desafiaram a ausência e permaneceram até hoje - gravadas por outros cantores ou garantindo o sucesso de um disco. É o caso das antológicas 'Hoje', 'Viagem' ou 'Universo no Teu Corpo'.
A conscientização política de Taiguara incomodava, naquele período negro do final da década de 60. Por isso teve início o processo de perseguição da censura, que culminou com a sua partida do Brasil. Todos os seus discos foram retirados de catálogo - e somente algumas canções consideradas 'inofensivas' foram reeditadas, com 'um cuidado especial: em álbuns de coletâneas de sucesso da pior qualidade'.
Longe da pátria, Taiguara passou a ter uma nova visão de nossa realidade. 'Andei pela  Europa, África e todo o continente americano. Do México às Malvinas vi na América um amontoado de povos inseguros, vivendo sob pretensas leis 'de segurança', oprimidos pela agressão colonial, sentindo o mesmo terror e correndo os mesmos riscos de Granada... Todos os povos latino-americanos - e incluo o Brasil - são pequenas e grandes 'granadas', prontas para explodir.'
Em Londres, onde cursou a pós graduação da Guidhall of Music and Drama, Taiguara produziu um LP com músicos da orquestra sinfônica, que foi proibido antes mesmo de ser editado. E ele desabafa: 'Como consolo, ou suborno para que eu me calasse, a Odeon me ofereceu a chance de fazer um disco 'com toda a liberdade'. Voltei então ao Brasil, e em 76 produzi com Hermeto pascoal o LP Imyra Tayra Ipy (onde falava do índio e da gente brasileira) que seria lançado com a Sinfônica do Rio Grande do Sul. E o que ocorreu? Simplesmente a Odeon não se empenhou no lançamento do disco; a censura do Rio Grande do Sul desmobilizou a Sinfônica e foram cancelados todos os shows do Circuito Universitário. Mais uma vez vencia esse pessoal que se esconde na noite escura do terrorismo, queima bancas de jornais e sufoca toda e qualquer liberdade'.
Com toda perseguição, como conseguiu voltar? Taiguara sorri: 'Minha volta foi muito preparada no Brasil. Houve uma mobilização dos companheiros que exigiam que eu voltasse à MPB, e dentro do clima e da tendência atual de 'abertura', minhas músicas foram examinadas pelo menos com respeito. E aí está finalmente o meu Canções de Amor e Liberdade.
Taiguara se ilumina ao falar do novo disco, onde canta suas raízes sulinas e o amor, sempre dentro de uma dimensão social e política. E faz sentir a influência de sua mulher Eliana, descendente dos índios Potiguares, que lhe deu os filhos Moina, Potiguar e Tagira, e com quem redescobriu a felicidade e o amor. 'Um amor maior, que vai além do relacionamento puro e simples entre um homem e uma mulher - analisa ele - e atinge uma ligação de solidariedade com a própria humanidade. Eliana é companheira de todas as horas. 'Esse amor o compositor mostra em algumas das novas composições, especialmente 'Marília das Ilhas' e 'Anita'. E a influência do Sul e do tempo vivido junto aos índios potiguares, estão em 'Voz do Leste', 'Che Tagira' ou 'América Del Índio'.
As tendências políticas permeiam todas as  novas músicas - e num momento Taiguara cede à tentação e resvala para uma redundante 'lição de moral' - na faixa 'Mais Valia', única falha real do disco. Mas a sua vibração não fica só em Canções de Amor e Liberdade, e ele diz, convicto: 'Estou cada vez mais consciente. É preciso cantar, lutar contra esse sistema, quebrar a flacidez em que se encontra a intelectualidade.' "

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