sábado, 14 de julho de 2012
Nossa Carolina em Londres Setenta ( Caetano Veloso)
Entre 1981 e 1982 a Editora Abril publicou uma série de livretos dedicados à análise literária, chamada Literatura Comentada, que destacava um escritor, poeta, cronista, letrista de música, etc. Os volumes, que eram vendidos em bancas, traziam uma seleção de textos, notas, biografia, comentários e até exercícios sobre os autores em destaque. Um desses volumes foi dedicado a Caetano Veloso, onde foi destacada não só sua obra musical (letras), como também seus textos em prosa. Um desses textos, chamado "Nossa Carolina em Londres Setenta" eu já conhecia do livro "Alegria, Alegria", publicado em 1977, e organizado por Waly Salomão, aliás, a primeira vez que ouvi falar no nome de Waly foi através desse livro. O texto, compilado no livro havia sido publicado pela primeira vez, talvez no jornal O Pasquim (a edição de Literatura Comentada, que reproduziu o texto, não cita a origem do texto). Segue abaixo o texto Nossa Carolina em Londres Setenta:
"Nelson Rodrigues disse que o povo brasileiro e a janela e o povo brasileiro na janela etc. etc. E Nelson Rodrigues é um poeta laureado, condecorado. Entretanto as janelas, mesmo no Brasil, têm servido para fins menos líricos do que aquelas aos quais ele se refere. Atenção para as janelas no alto. As feras do Saldanha*. A avenida Presidente Vargas. O bicho brasileiro na janela. Eu gostaria de contar ao Chico Buarque de Hollanda a história da Carolina, de dizer como a história da Carolina é parecida com a história da Gatinha Manhosa. Eu um dia pensei que a música brasileira estava num beco sem saída. Então eu saí da música brasileira e caí na vida, como acontece frequentemente com mocinhas sergipanas que vêm morar em Salvador. E aí eu me apaixonei pela gatinha manhosa e, algum tempo depois, com o meu coração volúvel do signo de Leão, pela Carolina. Eu gostaria de contar, mas não tenho talento para narrar coisas tim-tim por tim-tim. Oh God, please, don't let me misunderstood. Devagar. Na letra de um de seus sambas Chico Buarque contrapõe a lua e a televisão, a rua e a sala. Digamos que eu, vivendo na miséria cultural brasileira, estou nessa sala, vendo televisão. A minha irmã Carolina está na janela vendo a rua e o meu amigo Chico está na rua, vendo a lua. A minha namorada está no vídeo, eu estou na sala, meu sogro Chico está na rua. Eu estou no vídeo,a minha namorada Carolina está no vídeo e o meu inimigo Chico está no vídeo. Eu estou na rua, a minha desconhecida Carolina está na janela e o meu amigo Chico está no vídeo. Permutações simples de três termos complexos. Nelson Rodrigues está no vídeo. Impermutával. O fato é que eu já não penso que a música brasileira está num beco sem saída. Ao contrário, acho que só tem havido saídas. E nada mais. A tropicália tinha uma musa (uma senhora cujo nome eu não posso dizer) e uma antimusa (a Carolina). Talvez se eu dissesse o nome da musa alguém viesse a entender o significado da antimusa. Mas já não há saídas demais. Não é possível nenhuma tropicália. Não procure entender nada. Chega de confusão. Sabe o que é que eu acho? - eu acho que você não precisa saber da piscina, nem da margarina, nem da Carolina. Eu gosto de Jorge Ben, de Roberto Carlos, de Chico Buarque de Hollanda, de Caymmi, de "Chuvas de Verão", de "Nazarin", de diversas coisas. Don't Think twice, it's al right mo, I'm only bleeding. Podemos ser amigos, simplesmente; coisas do amor nunca mais. Eu bem avisei: vai acabar. De tudo lhe dei para aceitar. Mil versos cantei para agradar. E agora não sei como explicar. Lá fora, amor: eu vi em Kings Road, no "Picasso" eu vi a inglesa deslumbrante. Ela veio e sentou na mesma mesa que eu e na minha frente. Ela nem me viu. Usou meu fósforo e, quando vagou uma outra mesa, ela se mudou para lá. Eu fiquei pequenininho cantando Carolina bem baixinho como em brasileiro. Tenho certeza que nem as crianças que cantaram esse samba nos programas de calouros da televisão souberam tão profundamente como eu a beleza da Carolina. Eu sou brasileiro, os meus olhos costumam se encher de água, eu sou humilde e miserável, estou na janela. Como na Alfama, em Santo Amaro, Évora, Cachoeira. Eu sou amável e terno, medroso. Eu sou lírico como Vinícius de Moraes, como Erasmo Carlos. Eu sou manhoso e dengoso. Não há salvação para mim. Nelson Rodrigues é um poeta laureado. Condecorado."
* As feras do Saldanha é como eram conhecidos os jogadores da Seleção Brasileira, na época que João Saldanha era o treinador
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