Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 22 de março de 2018

Novos Baianos - Jornal Rolling Stone (1972)

Em sua edição de 15 de fevereiro de 1972, o jornal Rolling Stone, um marco na cultura alternativa brasileira, trazia uma matéria sobre um show dos Novos Baianos, acontecido no verão daquela ano no Rio . Na época, o histórico disco "Acabou Chorare" ainda não havia sido lançado, mas já estava sendo elaborado, e os músicos ainda moravam no apartamento em Botafogo, antes de se transferirem para o famoso sítio em Jacarepaguá. A matéria, intitulada "Novos Baianos: outra transação" é assinada por Joel Macedo:
"O que aconteceu na madrugada do último dia 16 no Teatro da Siqueira Campos foi de arrepiar. Os Novos Baianos e a Cor do Som transportaram a sua comunidade de Botafogo para o palco do teatro e fizeram o maior show que eu já vi no Brasil desde que eu me entendo por gente.
Apesar de D. Tereza Raquel com o apoio do empresário Paulo Lima cobrar 20 contos a entrada (10 para estudante, o que não é nada legal), à meia-noite, hora de início do show, as galerias do teatro já estavam lotadas. Grande parte do público de Gal resolve emendar e nem saiu do teatro em protesto contra o preço absurdo dos ingressos. Transações. Expectativa. Pepeu e Dadi entram no palco em penumbra e começam a acertar os ponteiros de suas guitarras. Moraes chega de manso e toma posição num banquinho. Baby e Paulinho Boca vão pra perto do microfone de voz. Quando Baixinho entra com seu bumbo verde-amarelo amarrado pelo pescoço, as luzes se acendem, e as guitarras, junto com o cavaquinho cheio de molho de Jorginho, começam a introduzir Brasil Pandeiro, a obra-prima exaltação de Assis Valente. Paulinho e Baby arrastam o vocal e a plateia desbunda.
Pepeu tinha seu amplificador a todo som e sambava com  a guitarra. Eu me lembro que a primeira vez que vi ele tocar, não entendi nada. Fiz crítica ao seu fraseado, achando grosso demais para o meu gosto, condicionado a anos por Clapton e Jeff Beck. O fraseado. Mas que touca é essa de fraseado. Com Pepeu é a malandragem em cima de uma guitarra. O Pepeu usa uma boina igual às toucas de meia dos moleques do morro. O Pepeu ri quando toca, se esbalda, solta tudo. O Pepeu balança, é o único cara no mundo que eu já vi sambar com uma guitarra na mão. E eu preocupado com o fraseado do Pepeu.
Quando um bando de desbundados entra num palco e toca Brasil Pandeiro, de Assis Valente, é sinal que uma coisa muito séria tá pra acontecer nos famosos 'rumos' da música popular brasileira. E que os Novos Baianos e a Cor do Som acabam de mostrar pra todo mundo, o caminho de casa.
O samba corria e Paulinho machucava seu pandeiro ao lado de Baby que bamboleava dengosa, merecedora dos maiores fiu-fius. Queiram ou não queiram, Baby Consuelo é a Rainha da Juventude Brasileira e não tem conversa. Baby arrebentando com a imagem da superestrela e curtindo tudo no maior relax. A plateia reagia como se estivesse em casa e aquilo parecia mais uma festinha íntima, que um concerto de entrada paga. Paulinho cantou 'eu estou apaixonado por você...' e arrancou suspiros da plateia feminina presente. E daí em diante tudo foi ficando cada vez mais bonito, e eu via bandeirolas por todo o palco, foguetes espocando e muitos cuscus e cocadinhas pretas. Teve uma hora que Moraes entrou de acordeom, Paulinho de maraca, e o encontro deles com as guitarras foi incrivelmente lindo como já estava sendo o encontro das guitarras com o alegre cavaquinho. Era um suingue alucinante e o som do rock nacional estava finalmente achado. E eu só não direi que se tratava de um samba-rock, porque os Novos Baianos também fazem dele um maxixe-rock ou um bolero-rock, música, enfim. O que aconteceu na histórica madrugada de 16 de janeiro  foi o encontro de várias culturas, a unificação de várias estreias e linguagens musicais, naquilo que daquele dia em diante passou a ser o som brasileiro do desbunde universal. Uma mistura de ponto de macumba com hard-rock, xaxado, baladas de Roberto Carlos, samba-enredo e muita queimação, da parte das tumbas, baterias, maracas, agogôs e pandeiros.
Paulinho Boca de Cantor
Paulinho Boca é a cara do novo ritmo, saltando com seu pandeiro como um jaburu elétrico. Paulinho é a mágica, a energia e o perfume do novo som brasileiro que pra dizer a verdade, não é novo, é sim, muito vivo e portador de grande antiguidade. E Herivelto Martins trazido à cena e o Bando da Lua com participação especial de Moraes e Galvão. A abelhinha zzummm... acabou chorare... eu sou amor... da cabeça aos pés... e depois foi Preta Pretinha enquanto corria a barca, um frevo rasgado que embarcou todo mundo nas águas do carnaval. Aí todo mundo brincou e pulou pelo palco e pelas arquibancadas do teatro. Era sugesta geral, Live, em pessoa. Gal Costa comandava um trenzinho na galeria e Waly Salomão não quis nem saber de se sentir recompensado por aquilo tudo - caiu firme na folia. Até o carnaval foi diferente. Dadi no seu baixo, contido e imóvel dava um leve toque de psicodelismo californiano na transação. Pepeu já não sabia mais se tocava ou entrava na dança e cada vez mais fazia os dois. O som todo foi uma brincadeira mas foi sério pra burro. E Brasil com suas loucuras e sua beleza não era mais uma crítica. Nem um simples folclore. Era uma verdade assumida com coragem e com muito orgulho. A voz da geral. A umbanda revolution que como linguagem não exige mais que CAIR NA PÂNDEGA!

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