Palavras Domesticadas

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domingo, 25 de março de 2018

Gilberto Gil Fala de Refavela

Lançado em 1977, o disco Refavela, de Gilberto Gil, é um dos melhores trabalhos de sua carreira.  Trata-se de um álbum em que Gil revela toda uma influência não só da música africana, a raiz da música negra mundial, como também da black music e do movimento Black Rio, que vivia seu auge naquele período. Em 2012, ano em que completou 70 anos, Gil foi homenageado com uma série de fascículos, denominada Coleção Gilberto Gil 70 Anos. Sob pesquisa editorial e textos do pesquisador Marcelo Fróes, a série traz depoimentos do músico sobre seus principais álbuns, e o volume 8 da série destacava o disco Refavela. Abaixo segue o texto do citado fascículo:
" 'Quando eu fiz 'Refazenda' com essa densidade da revisita e da retomada, eu quis levar o 're' adiante e aí o segundo estágio foi o 'Refavela' - com a coisa da revisita ao mundo negro', lembra Gilberto Gil, 35 anos depois. 'Eu queria aprofundar a questão da revisita... e aí a oportunidade foi com a África e o festival na Nigéria, que foi uma coisa enorme! Na volta concluí que, depois da fazenda haveria a favela - ambos territórios importantes, periféricos ao centro da civilização brasileira. A fazenda era um canto, a favela era outro. O conceito já estava praticamente estabelecido, mas a coisa na África foi fundamental - porque a vila olímpica que se construiu para abrigar os 50 mil representantes que vieram do mundo todo era como os blocos do BNH aqui. Havia essa ligação direta. Havia em mim um gosto por esse trabalho conceitual, unindo elementos da sociologia, da política e da antropologia, tudo isso num nível popular... num nível pop', define.
Gil foi convidado a participar do 2º FESTAC - Festival Mundial de Arte e Cultura Negra - que aconteceria por cerca de um mês a partir do final de janeiro de 1977 em Lagos, na Nigéria.
Ainda no final de 1976, quando foi convidado, Gil não só aceitou como também montou uma banda especialmente para apresentar-se ao vivo no evento ´com Perinho Santana (guitarra), Cidinho (teclados), Rubão Sabino (baixo), Djalma Correa (percussão) e Robertinho Silva (bateria). 'Quando Robertinho Silva soube que eu ia pra África, ele bateu lá em casa: 'Quem vai sou eu! Não quero nem saber!' Aí eu respondi: 'Mas rapaz, você tem seu trabalho com Milton (Nascimento)...' Ele já havia falado e disse 'eu vou pra África com você!', lembra Gil. 'A ideia de fazer um novo disco surgiu na Nigéria', lembra Gil.
'Quando voltamos, Robertinho reintegrou-se à banda de Milton e chamamos Paulinho Braga para gravar conosco, mas mesmo assim Robertinho ainda voltou pra que gravássemos um compacto daquela banda que fora à Nigéria', historia o autor, que participou como co-autor e músico das duas faixas registradas pela Brazil Very Happy Band para a Polydor em maio de 1977. Antes, porém, Gil e sua banda - com Robertinho substituído por Paulinho na maioria das faixas - entraria no novo estúdio de 16 canais da Phonogram para registrar o álbum 'Refavela'.
Era época do movimento Black Rio, com o funk começando por aqui e Gil quis aproveitar a maré - começando por uma controvertida versão do Samba do Avião de Jobim. 'O disco era pra isso, para registrar os 'aforismos' que havia na época - como era juju music de 'Balafon' e os blocos afro-baianos de 'Ilê Ayê', lembra.
'Era Nova' já existia no repertório de Gil, quando fora feita para Roberto Carlos - que não a gravou -, enquanto que 'Sandra' tivera origem na prisão de Gil por porte de maconha durante a passagem dos Doces Bárbaros por Florianópolis em julho de 1976. Embora Sandra fosse o nome de sua mulher à época, e que a mesma tenha sido um discreto personagem na letra da música, como foram as enfermeiras do sanatório em que Gil foi internado por ordem da Justiça, Sandra e Andréa eram duas amigas tietes de Caetano e Gil. 'Refavela', 'Aqui e Agora' e várias outras foram compostas durante a viagem  à Nigéria. 'Eu trouxe um balafon típico da região do Golfo da Guiné e fiz 'Balafon' ', lembra-se Gil, que ficou feliz de ter o amigo Roberto Santana - dos velhos tempos de Salvador - na produção do novo álbum. 'Refavela' foi gravado entre o final de março e o final de abril de 1977, quando também foram registradas as novas músicas 'Sala do Som' e 'É', além de 'Músico Simples' (de 1974). Todas as três acabaram ficando de fora do LP, mas foram finalmente lançadas pela Universal Music no CD 'Satisfação' de 1999.
'Quando eu fiz 'Refavela', já sabia que era a segunda parte de uma trilogia que eu iniciara', comenta Gil. 'Mas eu tinha consciência de que a terceira parte não seria 'Refestança', complementa. Gil refere-se à turnê relâmpago que realizou com Rita Lee e seu grupo Tutti Frutti em outubro de 1977, e que rendeu o disco ao vivo 'Refestança' naquele Natal. É que a turnê 'Refavela', iniciada pouco após o lançamento do LP de Gil em maio de 1977, acabou sendo interrompida por falta de apoio logístico. Para alcançar o interior do país com um pouco menos de desconforto, Gil desejava adquirir um ônibus monobloco usado e solicitou que este custo fizesse parte do tour support pago pela gravadora, mas não foi atendido. Gil resolveu bancar o ônibus do próprio bolso e pediu rescisão contratual à Phonogram.
Gil não sabe se teria ido para a Warner caso a Phonogram lhe tivesse apoiado na aquisição do ônibus, então é óbvio que a saída do amigo André Midani da presidência da gravadora na mesma época acabou pesando. Midani deixara a Phonogram para ser o primeiro presidente da Warner no Brasil, quando a mesma aqui se instalou em 1977. O convite para integrar o cast da nova gravadora incluía nas luvas o reembolso do valor dispendido particularmente por Gil no ônibus da turnê de 'Refavela'. Lendas da MPB. "

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