Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 14 de abril de 2017

Bezerra da Silva: "Eu Vou Onde a Coruja Dorme" (1994) - Parte 2

"C&P - Você vai votar em quem?
Bezerra - Eu não voto. Não me leve a mal, mas não assino atestado de burro. Só tenho bronca desses caras. Vocês vão dizer: 'ah, o Bezerra tá revoltado'... não é. Passei fome, fui discriminado, o favelado não é considerado gente, é um elemento nocivo. Favela não é considerada residência, sabia? A polícia chega, dá tiro, faz o que bem entende, e fica por isso mesmo. Ali não tem mandado de juiz pra te prender na tua casa. Eles botam os homi na rua, fodem a mulher da gente, roubam as coisas do barraco e vão embora. E não tem um repórter com disposição pra dizer isso. Vem me perguntar sobre  tóxico na favela. Por que não perguntam se tem maconha em Brasília, se alguém estupra, se tem boca de fumo?
C&P - Pô, no Congresso tem uma tremenda boca de fumo. O sobrinho do Presidente morreu em cima do pó!
Bezerra -  - E por que ninguém mete esses putos na cadeia? 'Bezerra, você tá revoltado.' Nada disso: eu sou favelado. Falar de pobre é mole, mas como é o que o tóxico chega no Brasil? Quem traz? Todo mundo tem avião particular? Favelado vai lá na Bolívia buscar cocaína pra vender no morro? Não tem condição nem de usar tóxico! Favelado cheira é caco de vidro!
C&P - Não pode ser viciado nem em comida, quanto mais em cocaína.
Bezerra - Vamos falar na língua de Congo: o tóxico é negócio de bacana. Falar a verdade dói? Então Deus dói, porque Deus é verdade.
C&P  - Mas o exército diz que vem aí pra subir  o morro.
Bezerra - É ruim. Se quer acabar mesmo com o malandro, prende os otários. Malandro é malandro, mané é mané.
C&P - E esses Mauricinhos do Samba que tão aparecendo agora, só matando?
Bezerra - Olha, é que não vou botar vocês de castigo, mas o que aparece aqui de bagulho... Ali tem uma pilha de fita que eu chamo de 'vala'. Esses meninos são até meus colegas, mas são uns garotos sem experiência e são dirigidos pelo produtor artístico. Ficam tocando marcha e botando nome de samba. (Batuca na mesa uma marcha e depois samba, muito mais rico e rítmico) É aquele negócio, Deus fez o mundo muito bem feito, chegou o malandro e armou pra cima, aí veio o padre e mandou aquele agá, veio o Bispo Macedo 171, maluco pra caramba e cheio de grana... Deus ficou só olhando... (risos) Quer mais 171 do que esses caras do Evangelho? Eles vêm aqui contar história, Jesus morreu, e eu: (balançando a cabeça) 'Legal... só que aqui vocês vão se fuder, não vai dar pra vocês'. 'Mas Jesus mandou...' 'Mandou mas não mandou muito. Quer dizer que Jesus mandou tu me dar uma volta?' (mais risos)
C&P - 'Ide pelo mundo e dê uma volta nos otários'.
Bezerra - Aí disseram: 'Você não é filho de Deus. Você não aceitou o batismo'. 'Então o que sou?' 'Você por enquanto é criatura de Deus.'
Tudo bem. A única coisa que posso te arrumar aqui é um baseado e mandar tu passar ali para dar dois pra ver se tu entra em cana e leva umas sacudidas pra deixar de ser FDP.' (Gargalhadas)
C&P - Teve um grupo de rap - O Rappa - que gravou um samba teu. Como foi isso, O Rappa chegou e você saiu correndo?
Bezerra - Tem vários roqueiros que são meus fãs, saio até na revista Bizz, me dou bem com a rapaziada. Primeiro gravei com Paulo Ricardo, e agora regravei com O Rappa aquela música de 82, 'Candidato Caô Caô': 'Ele subiu o morro sem gravata/ dizendo que gostava da raça/ foi lá na tendinha, bebeu cachaça/ e até bagulho fumou/ jantou no meu barracão'.
C&P - É a Melô do FHC!
Bezerra - 'Fez questão de beber água da chuva/ foi lá no terreiro pedir ajuda/ e bateu cabeça no congá/ Mas ele não se deu bem/ porque o guia estava incorporado/ e se esse político é safado/ vai ver na hora de votar/ ê ê irmão/ Se liga no que eu vou lhe dizer/ depois que ele for eleito/ dá aquela banana pra você.' Isso é de Walter e Pedro Butina.
C&P  - 'Bicho Feroz' foi seu maior sucesso?
Bezerra - O que vendeu mais, disco de platina duplo, foi 'Vou apertar mas não vou acender agora'.
C&P  - Só pelos direitos dessa música era pra você tá rico pacas, né?
Bezerra - O ECAD chama-se O Castelo dos Homens Sem Alma. É uma quadrilha de ladrões impune que não há lei que meta eles na cadeia! É aquele negócio do tempo da escravidão: crioulo não pode ter muito dinheiro que foge da casa. Eles têm medo do crioulo ganhar dinheiro e comprar um helicóptero e cair na casa deles.
C&P - O Brasil é um país racista mesmo? Crioulo aqui vê a coisa preta?
Bezerra - O crioulo no Brasil é tolerado. Onde ele chegar tá ruim. Ninguém gosta do crioulo, nem outro crioulo, é foda. Crioulo correndo é ladrão, se andar devagar é preguiçoso, se falar alto é mal educado, se falar baixo é viado, se vestir um terno tá metido, se andar sujo é relaxado... (risos) O crioulo inteligente vai logo pro terreiro, que padre não gosta de crioulo rezando, vai atrapalhar a porra da missa dele. Mas se andar todo de branco logo dizem: 'Vai fazer macumba?' Se desaparecer: 'Tava em cana, cumpadre?' Aonde for tá roubado.
C&P - Você teve agora em Berkelee, fez 12 shows nos EUA, o caralho. O que você achou dos crioulos lá?
Bezerra - Sofrem menos. Lá o crioulo manda.
C&P  - Manda bala.
Bezerra - O crioulo lá tomou a dianteira, foi pra escola, estudou pra caralho. O brasileiro não sabe o dia que Jesus Cristo morreu porque não saiu no jornal. O americano sabe. Negócio mudou. Você vê artista preto fazendo papel principal no cinema.
C&P  - Michael Jackson É preto?
Bezerra - Não conheço, mas dizem que tomou um banho de ácido muriático. (risos)
C&P  - Por falar em idade, quantas você ainda tá dando por semana?
Bezerra - Você tá falando em meter? Isso é a coisa mais mole.
C&P - Mole??! Tem que ficar duro (risos) Qual o segredo da potência eterna?
Bezerra - Não tem segredo. Você fode quando quiser.
C&P - Tô falando de meter, não de empurrar pra dentro.
Bezerra - É você se preparar fisicamente. Não usar tóxico, principalmente a cocaína. Não sei se vocês sabem, mas meu filho do meio, mataram ele. Se meteu em drogas: 19 anos e não fudia mais ninguém. O cara que cheira pó é um infeliz, um cara doente, bicho. Porra, você tá ali com uma mulher e a pica não levantar...
C&P  - Você nunca passou  por isso?
Bezerra - Fora de sacanagem: até hoje nenhuma mulher reclamou de mim. Tive uma porrada de mulher. Bicho, se eu quiser eu meto agora, fico com a pica dura na hora! 'Sobe aí, cara!'
UOOOON! (risos) A potência é uma questão de espírito, de mente, de domínio, então a minha pica levanta na hora que eu quiser.
C&P  - É ensinada! A minha também: eu falo 'Deita! Deita!', e ela fica ali deitada...
Bezerra - A cocaína atinge justamente nas duas bases que você precisa pra poder fuder: tira sua fome e tira seu sono. No início é estimulante, mas vai enfraquecendo seu organismo, seu cérebro, e você vai pro caralho.
C&P - Tim Maia falou que na cocaína o tesão migra: sai do pau e vai pro cu. O cara que cheira pó fica doido pra dar o rabo.
Bezerra - Olha, eu acredito que o camarada que dá a bunda é porque ele gosta, não tem nada de botar a culpa em cima do pó. É como falar 'eu fumo maconha porque tomava cachaça'. (risos) Tudo bem, quem tem sua bunda faz lá o que quiser. Na TV Globo...
C&P  - Alguém já te deu uma patolada?
Bezerra - Vindo me cantar? Nunca aconteceu, não sei se tiveram vontade ou se minha cara assustou. Eu vinha no ônibus de Sepetiba e teve um assalto: eles tavam de cabeça baixa, quando levantaram o olho e me viram, o assalto acabou. Pensaram que eu fosse de outra quadrilha. Realmente, minha cara não é agradável, e eu vinha com mais dois crioulos enormes. Um deles, Geraldo do Bongô, perdeu um concurso de beleza pra King Kong. (risos)
C&P - Tem muito neguinho que vai pra roda de samba e a mulher aproveita pra sambar na roda.
Bezerra - Também tem. Até gravei uma música de Ricardão. Eu tô vacinado contra esse negócio de chifre: quando eu tinha uns 20 anos, morava com uma mulher, eu saía pra trabalhar na obra e ela botava um malandro pra dentro de casa. Fui, fui, um dia fiz que ia trabalher e voltei: dei num flagrante nela, e o cara deitado lá vestido com meu pijama...
C&P - O problema era usar o pijama. Já  a mulher...
Bezerra - Trabalhei seguramente uns dopis meses pra comprar esse pijama! Toda semana guardava um dinheiro! E o pijama era pra vestir num dia de domingo e aparecer na porta da birosca, ninguém tinha um pijama daqueles. E agora vê que merda: eu deixava cem merréis pra mulher comprar comida, o vagabundo já levava um galo(*) pra dar uma volta no morro. Bati na porta e entrei: 'Que porra é essa?' O malandro tava lá no colo da mulher, ela espremendo cravo nele. Minha primeira vontade foi de rir, morô, mas aí bagunçava. Meti a mão na gaveta mas a mulher falou: 'Não precisa ficar com medo que na gaveta não tem nada.' Ele veio com aquela: 'Eu entrei aqui porque ela mandou...' 'Malandro, faz o seguinte: tira o pijama e leva a porra da mulher contigo. Mas leva agora!' O morro todo ficou... (aquele zum-zum). Isso foi na quinta. No domingo, na maior cara de pau, vesti o pijama e cheguei na porta (pose toda metida). Bicho, vou matar uma mulher porque comeram a buceta  dela? Juiz vai me dar 30 anos de cadeia.
C&P - Quer dizer então que você é corno? (Opa! Bezerra fica invocado e vem pintando uma saia justa. Mas ele segura a onda e sai pela tangente)
Bezerra - Corno eu nunca fui porque nunca fui casado. Agora mesmo eu moro com minha mulher mas não sou casado. Ela pega no meu pé mas não é pela minha beleza, é por medo de eu levar um bote. Também não tô aí pra dar mole pras mulheres, tenho meus filhos pra criar.
C&P - Tem um samba que você canta que diz: 'quem usa antena é televisão'. E na sua casa, a imagem tá pegando bem?
Bezerra - (distraído) Pega, pega bem. (se dá conta) Lá não tem antena naquela porra!
C&P - Ah, então lá é a cabo! (risos) E tem que enfiar na tomada! (mais risos)
Bezerra - Casseta & Planeta! Esse pessoal é foda."

(*) Galo - Nota de 50,00



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