Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 28 de março de 2016

Entrevista com Chico Buarque e Edu Lobo - Revista Qualis (1993) - 2ª Parte

" Qualis - Onze anos depois de sua primeira edição, estão lançando em CD o 'Grande Circo Místico'. O que representou  este disco para vocês?
Edu - É super importante. Fazia muito tempo que eu não ouvia esse disco, e agora, quando fiz a remasterização em Los Angeles para o relançamento, ouvi com muita atenção e tive a boa sensação de sentir que ele não envelheceu. Eu não tive muita vontade de ficar mexendo, o que normalmente acontece; sempre a gente quer consertar aqui e ali. Ele tem uma cara que me agrada muito, foi um trabalho que eu gostei muito de fazer. Agora, o que sai foi um pouco ampliado em relação ao lançamento inicial. Foram acrescentadas duas peças instrumentais, 'Oremus' e 'O Tatuador', que faziam parte do espetáculo, tinham ficado de fora do LP e foram incluídas agora porque a duração maior de CD permite.
Qualis - Vocês se tornaram donos dos direitos desse disco, que está saindo pelo selo Velas. O que representa o atual crescimento dessa gravadoras independentes aqui no Brasil?
Chico -É uma tendência que está ocorrendo em toda parte, no mundo todo.
Edu - Aqui esses selos menores começam a aproveitar as brechas deixadas pelas gravadoras maiores, que não estão ligando para uma música que não tenha uma vendagem imediata. Dessas menores, a melhor proposta para lançar este trabalho veio da Velas. Foi a única que concordou com essa remasterização, que não é luxo, é necessidade.
Qualis - Edu, nos anos 60 o seu trabalho foi classificado dentro de uma corrente chamada de 'social'. O Chico também tem muitas músicas de cunho social forte...
Edu - Pior, era chamada 'música de protesto'. É um label da gravadora, que precisa botar um carimbo, como 'axé music', por exemplo. O Bob Dylan era compositor de protesto, eu era um na época e o Chico também. Então, compositor de protesto tem que andar com compositor de protesto, aí você faz uma balada e parece que está traindo a sua própria obra, você já não é mais o mesmo.
Qualis - Mas hoje, em 93, para vocês o engajamento político-social combina com a criação artística? É uma coisa que pode dar certo ou são duas forças que não combinam?
Chico - Eu acho que pode combinar. Desde o começo eu digo isso, não há obrigatoriedade de engajamento social ou político numa obra de arte. Mas também não sou da corrente que acha o engajamento prejudicial à estética. Esse disco, por exemplo, você pode julgá-lo inteiramente desengajado, fora da realidade social brasileira, e por outro lado você pode ter uma leitura política e até social engajada dessas músicas. O romance que eu escrevi, 'Estorvo', as pessoas falavam 'Ah, mas ele não é engajado'.
Qualis - Existe essa cobrança até hoje das pessoas falarem que você se distanciou...
Chico - Há uma cobrança dos dois lados. Existe muito mais estreiteza ideológica por parte de quem ouve do que por parte de quem produz. No tempo da ditadura então, era uma coisa doida, porque não só as pessoas ansiavam por mensagens de contestação, viam coisas que não existiam, mas a própria censura também enxergava subversão em tudo. E as coisas acabavam por isso adquirindo um teor contestatório ou subversivo, dependendo do momento ou da leitura que se fizesse.
Acho que não pode ser uma preocupação básica do artista criador. Ele tem que estar aberto para tudo. Aqui, por exemplo, para escrever essas letras eu mergulhei em livros sobre o zen-budismo, matérias a respeito das quais eu era absolutamente leigo. Passei a me inteirar de questões místicas porque era necessário.
Um artista que não tem nenhum engajamento na sua vida pública é capaz, como artista, de escrever uma peça engajadíssima se isso for interessante para produzir uma obra de ate. É isso que é importante. Claro que você ter uma posição política fora do trabalho é uma coisa inteiramente diferente.
Edu - Existe uma coisa fundamental que é a qualidade artística. Na época, eu lembro de que as pessoas ditas 'engajadas' só ouviam certo tipo de cantores ou compositores e, às vezes, por causa disso, tinham de engolir canções de quarta ou quinta categoria em termos artísticos, só porque eram engajadas, como se fossem melhores por isso. Se o texto que está sendo dito é políticamente correto, isso não quer dizer que a música, o trabalho seja interessante. Por outro lado, tem o artista que faz canções de amor e é rotulado de de 'alienado' ou 'por fora', só porque é um trabalho mais leve.
Chico - Essa discussão existe há muito tempo, desde o fim dos anos 60, aquela besteira de 'música alienada'...
Qualis - Hoje ela ganhou outros contornos. Em recente entrevista à Qualis, Gal Costa disse que existe hoje uma militância política na carreira dela, que se dá através da valorização de um certo tipo de composição popular, numa abordagem instrumental mais rigorosa.
Chico - Evidente. Porque a militância política hoje é muito diferente do começo dos anos 70, na época da guerrilha urbana. Hoje a questão ideológica está muito mais livre.
Qualis - As formas de  música erudita os inspiram de alguma maneira para realizar seus trabalhos?
Edu - Sim, mas não é só isso. Tem música popular o tempo inteiro, brasileira, jazz, Piazzolla, qualquer tipo de música que me passe algo interessante. É claro que um dia ou  outro alguma informação acaba aparecendo em minha música.
Acabei de fazer um samba em par com o Chico - por sinal, ele está me devendo a letra - , em que apareceu uma sequência estranha de acordes. Fui descobrir tempos depois que era reminiscência de um concerto do compositor cubano Leo Brauer que ouvi 20 anos atrás. Isso voltou agora e entrou num samba absolutamente carioca.
Chico - Eu nunca peguei uma partitura de Stravinsky para estudar, mas ouvi muito, e muito jazz também. Essas coisas fazem parte da minha formação, mas bem menos do que para Edu. Minha educação musical foi se dando com o tempo, através do contato com músicos como Tom Jobim. A parceria com o Edu também me aprimorou como músico.
Qualis - Você chegou a dizer que foi a batida de João Gilberto que o motivou a tocar o instrumento.
Chico - Sim, claro. Antes disso eu gostava de música e cantava marchinhas de carnaval, mas não tocava. A partir daí, comecei a aprender violão errado ('no olho' ou de ouvido, através dos discos, tentando imitar) e fui me familiarizando com o instrumento. O ouvido foi corrigindo o olho, que foi corrigindo a mão. Hoje, eu conheço o meu instrumento muito mais do que 20 anos atrás.
Ultimamente tenho tocado muito violão e tenho me divertido muito ao rearmonizar músicas que eu tinha esquecido. É um trabalho interessante de recriação. "
(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário