Palavras Domesticadas

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domingo, 8 de novembro de 2015

Alceu Valença - Revista de Domingo Jornal do Brasil (1994) - 2ª Parte

" O seu pai, Seu Décio - que aliás, não gostava nada dos dotes artísticos do filho - mandou-o estudar direito em Recife. O moço até que tentou. Mas, logo em seu primeiro estágio, num escritório, percebeu que não tinha jeito para o negócio. Ao atender um cliente que estava sem razão na disputa com uma loja, acabou tirando do bolso um dinheiro para ajudar o pobre homem. E largou a Advocacia. Pouco depois disso, em 1969, rumou para os Estados Unidos - onde tocou nas praças para os hippies. Nessa época, já estava parecidíssimo com eles. O pai, que então desaprovava o cabelão, os chinelos, tudo mais, hoje se debulha de orhulho. Eis o verso, que diz na ponta da  língua, inventado em homenagem ao filho: 'Sinto que meu nome/ antes de mim já morreu/ cada vez sou menos Décio/ cada vez mais pai de Alceu.'
Era a hora da virada. Em 1972, já no Rio, estreou em disco fazendo dupla com o amigo Geraldo Azevedo - que conhecera na casa de Wilson Lyra, primo do político Fernando Lyra, na Zona Sul carioca. 'Sou ao mesmo tempo irmão mais velho e mais novo de Alceu. Quando ele vira menino e embola o meio de campo, sou o mais velho. Nas horas em que baixa o Alceu sábio, passo a ser o mais novo, fico só ouvindo', venera Geraldinho. Por causa do modo teatral, como se apresenta no palco - às vezes um coringa, às vezes um bufão - Alceu ganhou o status de mais original de todos os compositores da leva que desceu o São Francisco. Misturava cocos, Jackson do Pandeiro, maracatus e Gonzagão com um rock eletrificado e quadris à Elvis Presley.
Nesta época, protagonizou uma das poucas rinhas de sua vida. Num show em São Paulo, Zé Ramalho, que ainda era violeiro da bandas de Alceu, exagerou num solo e levou um pito no intervalo, no camarim. Na volta, em pleno palco, partiu com o violão para cima de Alceu. 'Fiz uma cara de Jesus e joguei minhas mãos para a frente, em concha, num gesto quase sacerdotal. Ele me poupou', conta Alceu. 'Mas hoje está tudo bem entre nós', assegura. De gesto em gesto, acabou no cinema. Fez o personagem principal no filme A Noite do Espantalho, dirigido por Sérgio Ricardo em Nova Jerusalém. O compositor e dublê de cineasta teve que diminuir o peso do papel de Alceu - uma metáfora de Jesus Cristo - por causa do jeito histriônico e abusado do protagonista. 'Ele era estrela demais', recorda Sérgio.
Passada esta fase inicial - de atritos e vida muito mambembe -, em 1980 inaugurou o selo Ariola no país e alcançou a consagração nacional. Ficou famoso além da sua conta. Ele se lembra daquele tempo e se depara mais uma vez encarnando Jesus, tentando um pistolão com o Criador: 'Ao meu lado, só via executivo, gente engravatada, diretores de gravadora. Música para mim não era aquilo. Eu não estava preparado para o sucesso. Um dia, num dos inúmeros voos até  São Paulo, fiquei tão estressado que olhei pela janela, vi um sol lindo e clamei ao Pai: 'Deus, derruba esse avião, acaba com isso!' Não foi ouvido.
Alceu olha para esse passado e, invariavelmente, acha graça. Assim como ri quando fala do pai - ex-repressor de sua carreira - e debocha dos seus medos no começo da fama, gargalha ao lembrar que imitou um corcunda para ser dispensado do serviço militar, da paranoia que sentia quando jogava basquete pelo Náutico (torcia pelo Santa Cruz) e da pose de Cristo que fez na capa do álbum Cinco Sentidos, de 1982. Hoje, como qualquer pessoa que tem coragem de rir de si mesmo, garante que é feliz e que só faz o que quer: bolou um disco acústico, quase lento, e mesmo assim o fez tocar nas rádios do Nordeste e até da França. De sua boa vida na cobertura do Leblon, manda a autodefinição: 'Sou um louco que analisa.' Depois, dá um espirro. Está gripado. Sintoma vindo em boa hora, uma prova que Alceu é humano. "

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