Palavras Domesticadas

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sábado, 22 de agosto de 2015

Ray Charles no Free Jazz - 1986

Ray Charles, um dos músicos mais importantes da música mundial já veio ao Brasil algumas vezes. Creio que a primeira foi ainda nos anos 60, sendo que existe um dvd com as imagens dele se apresentando numa TV brasileira. Essas imagens foram preservadas porque a equipe de Charles fazia questão de registrar e preservar suas apresentações, não só em seu país, como em todas as suas viagens pelo mundo. Se dependesse da televisão brasileira, aquelas imagens raras estariam perdidas para sempre.
Tenho lembranças de outras passagens de Ray Charles pelo Brasil, uma delas numas das edições do finado e saudoso festival Free Jazz, que trazia sempre grandes nomes do jazz internacional, em todas as suas vertentes, assim como atrações nacionais. Ray Charles era um dos principais nomes, dentre tantos outros, a participar daquela edição, e na ocasião o Jornal do Brasil fez uma matéria especial com Ray, escrita por Carlos Leonam, com o título de "Ray, um personagem de lenda":
"Vi Ray Charles pela primeira vez, quando cantava no Olympia, ao fotografá-lo para  O Cruzeiro, em maio de 1963, há 23 anos.  Convivi com Ray Charles nos bastidores do Olympia, durante quatro horas, ao entrevistá-lo um dia depois. Muita coisa perguntei, muita coisa vi, muita coisa escutei. Não sei se posso dizer que conheci Ray Charles Robinson, preto, cego, cantor, compositor, saxofonista, pianista e organista. Perguntei, vi, escutei. Nos bastidores do Olympia, sem vê-lo, ouvia a sua voz rouca, seus gritos patéticos, por vezes alegres, e me perguntava qual seria a verdadeira personalidade desse homem cuja mensagem é compreendida há gerações no mundo inteiro.
Talvez Ray Charles Robinson ainda seja dos poucos personagens de lenda, num mundo que diz não mais acreditar em ilusões. De tudo o que se possa ter lido ou ouvido a seu respeito, é difícil distinguir a verdade da ficção. Chamam-no o gênio, o sumo pontífice; seus colegas até dizem:
- Cante, deus.
Então indaguei:
- Você acredita em Deus, Ray Charles?
- Eu acredito em Deus, eu sinto Deus ao cantar. Mas isso é um assunto íntimo. Prefiro não falar nessas coisas.
Ray Charles parara um instante e parecia me ver. O espetáculo do Olympia acabara e  o público, em delírio pedia mais, depois de escutar durante hora e meia músicas como Georgia on My Mind, I Got a Woman, Hit the Road Jack, Hellelujah, Careless Love. Os aplausos continuavam. Do piano, num salto, ele se aproximou do público. Ray Charles se abraçava como se abraçasse a plateia. Ria, gritava, quase chorava. Por um instante temi que Ray Charles pudesse cair. Ele foi mais à frente, repetiu o gesto, abrindo e fechando seus grandes braços, agradeceu, voltou como por instinto ao seu piano.
A alegria de Ray Charles me pareceu sincera, seu abraço o abraço a uma pessoa querida. Bem apertado.
Nascido em Albany, na sulista Georgia, Ray Charles Robinson cresceu num gueto de pretos. Uma favela urbana como as nossas. O glaucoma atacou quando tinha cinco anos e o menino Ray ficou cego para sempre.
- A última coisa de que me lembro é um piano. O piano negro da minha infância.
'Uma vez fui cego, mas agora vejo', diz a letra de Careless Love, o blues clássico de W.C. Handy. Careless Love, juntamente com Georgia on My Mind e I Got a Woman são as preferidas de Ray Charles. As músicas que ele sente. Músicas que fazem Ray Charles ver.
- Quando eu canto, vejo.
Com a doença, sua mãe colocou-o num colégio para meninos cegos. Aos 12 anos, já havia aprendido a aritmética musical: Do Fundo do Meu Coração. O  que canta Ray Charles? Na realidade, é um cantor de rhythm and blues. Mas ele canta rock'n roll, canta gospels, pop, country and western.
Alguns já tentaram negá-lo como jazzman, embora ele seja o primeiro cantor e músico popular a inverter a ordem das coisas: tornou-se, primeiro, famoso cantor de jazz e, depois, gravou coisas ditas comerciais. Um dos que condenaram seu estilo foi Big Bill Broonzi  ,talvez o maior cantor de  blues:
- Ele mistura blues com spirituals. Eu sei que isso é errado.
Não se pode misturá-los. Ele tem uma grande voz, mas é uma voz de igreja. Ele deveria cantar numa igreja. Ray Charles também compõe suas músicas. Essas músicas sempre viram sucesso. E sempre são gravadas  por outros cantores.
- Eu não aceito músicas impostas. Só gravo aquilo que sinto, só gravo aquilo que pode servir como mensagem. Não acredito que haja um conflito entre a música religiosa e a minha música. Canto com sentimento e o gospel song é uma música que tem sentimento. Frequentei a igreja, fiz parte do coro, e é natural que a minha interpretação seja um reflexo disso. Acho que qualquer tipo de pessoa pode ouvir e entender todas as espécies de música. Tento fazer com que sintam que Ray Charles é bom em qualquer tipo de música, e não que Ray Charles é só um cantor de rhythm and blues. Música é uma coisa grande e muito importante.
Isso me faz lembrar um disco de Ray Charles, gravado em 1956, no festival de Newport (disco raro: ele toca saxofone). Na última faixa, ouve-se sua voz rouca gritar:
- Agora eu quero cantar uma coisa que todos entendem. Falo do blues. Todos entendem o blues.
Sim, todos entendem o blues. Mas todos entendem mais Ray Charles. Nos bastidores do Olympia, lá se vão 23 anos, sua equipe o tratava como a um deus. Seria por sua personalidade impressionante, seu gênio indiscutível, o seu exemplo como ser humano? Ou era um tratamento estritamente profissional, a proteção de uma joia rara?
A cada minuto, pelo menos uma rádio americana toca uma música de Ray Charles. O menino preto, pobre, cego da favela de Albany, na véspera de seus 56 anos (nasceu no dia 23 de setembro de 1930), permanece uma lenda viva. Quem for ver, ouvirá."

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