Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Luiz Melodia Preparando o Bote - Revista Bizz (1986)


 A revista Bizz nº 12 (dezembro de 1986) trazia uma matéria sobre Luiz Melodia, assinada pelo jornalista José Emílio Rondeau, com o título "Luiz Melodia preparando o bote". Nela Melodia fala de seu início de carreira, das dificuldades que a mídia impõe aos artistas, do racismo que sofria e outros fatos de sua vida:

"Uma riqueza particular na tradição da MPB é o estoque de versos lapidares, gemas, pérolas, poesia, chame do que quiser. 'Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor' (Guilherrme de Brito). 'Perto de você me calo, tudo penso, nada falo' (Noel Rosa). 'Quero chorar, não tenho lágrimas' (Monsueto?)* 'Eu entendo a juventude transviada e o auxílio luxuoso de um pandeiro' (Luiz Melodia).

Só de cabeça, daria para compilar mais uma infinidade de versos do mesmo quilate só nos discos do Melodia. Seu estilo, aliás, parece mais uma colagem desses quase hai-kais, dispensando as articulações e sugestões que outros letristas usam apenas para preparar e dar uma 'lógica' ao desfecho final, a verdadeira bomba de um ou outro versos.

Ele está agora à minha frente, tranquilão, calça de couro preto e camiseta branca, sentado na varanda de um apartamento recém-alugado na Barra, com uma sensacional vista para o mar. Define seu estilo como 'jatos de poesia', diz que não tem formação literária além dos livros de zoologia que devora com a paixão de um colecionador. 'Fico cheio de inspiração', diz com um sorriso matreiro nos olhos.

Pois é, houve até um quadrúpede fantasiado de 'crítico' que recomendou ao Melodia ler Drummond para parar com essas letras - para ele, 'desconexas' e 'incoerentes'. Mas deixa pra lá, afinal ele sempre foi muito bem acolhido pela maioria da crítica. Suas mágoas e ressentimentos são outros - talvez típicos de quem, como ele, enfrentou na década passada a mídia e as gravadoras com inabalável vontade própria e consciência do seu trabalho. Jards Macalé e Jorge Mautner também não devem ter passado impunes...
'Quando gravei Negro Gato, fui na Globo filmar um play-back e aí tinham posto uma coreografia com umas garotas vestidas de mulher-gato (risos e gargalhadas ecoam pela varanda). Eu disse: tudo bem, tudo legal, só que tirem as 'gatas'... No dia seguinte, eu estava proibido de entrar na Globo...
Ninguém é profeta em sua  própria terra. Eu tiro o clichê do bolso quando ele começa  a desfiar seu ressentimento do Rio de Janeiro. 'Até me nego a fazer show aqui, a Jane (sua mulher e empresária) briga muito comigo por causa disso... É uma cidade linda, mas está cheia de pessoas duvidosas, se preocupam mais com a minha vida pessoal do que com meu trabalho.
'Tudo começou quando eu gravei Pérola Negra, eu desci do morro para fazer um trabalho que não era samba, aí veio: 'Como é que um negro do morro pode não fazer samba? Impossível!' (mais risos e gargalhadas). Mas são pessoas medíocres, eu não esmoreci por causa disso. Se deixar, eles te entalham e manipulam...'
Pergunto a ele se não acha suspeito que, enquanto do blues, brotaram o jazz, o rock e todos os seus derivados, o funk, o soul, o reggae etc, etc, o samba - com algumas honrosas exceções - foi trancado a sete chaves como folclore para a turistada.

'É isso, é isso aí! Você não vê um grupo de negros tocando funk no Chacrinha, só se for samba...'

O movimento Black Rio, também na década passada, foi assassinado no berço, a pauladas, por jornalistas brancos que se consideravam intelectuais por terem feito a faculdade de Sociologia. Pergunto, então, se quando ele desceu do morro tinha consciência de ser tão perigoso...

'Nunca imaginei. Não entendi nada... Se eu fosse baiano, talvez não tivesse acontecido.'

Naquela época (e as coisas não mudaram tanto assim), bastava ter um estilo e querer defendê-lo com unhas e dentes para ser enquadrado como 'maldito' e daí escorraçado da mídia, principalmente TV e rádio. Que maldição é essa, Luiz?

'Sei lá. Excesso de talento e audácia. Eu sou muito audacioso. Eu tenho histórias fantásticas, de gente de gravadora que vinha: 'Corta esse cabelo, Luiz, que você vai fazer sucesso... Põe umas roupas mais elegantes...' Depois vêm as cobranças dos amigos: 'Pô, não acho seu disco em nenhuma loja', meu pai: 'Pô, seu disco não está tocando no rádio, e tem tanta merda tocando...'

'Pô, se eu fico dois ou três anos sem gravar, é por opção. Não tem sentido fazer um por ano, é uma exploração que cansa até esgotar... A gente precisa de uma gestação de nove meses pra nascer.'

Arrisco que esse veneno composto de purismo e racismo influi na divulgação. Quantas vezes, aqui na Bizz, a gente teve de pedir e pedir de novo certos discos de samba ou funk, que não vinham porque achavam que 'não íamos gostar'?

Luiz, lacônico: 'O racismo acontece, eu sei'.

 Começamos a conversar sobre as letras da Jovem Guarda - principalmente Erasmo Carlos -, que ele tanto adora. 'Eu era muito apaixonado na adolescência, com grandes dificuldades para namorar as gatinhas... Ora, no próprio morro tinha esse racismo, de você chegar numa garota um pouco mais clara e ouvir: 'Sai daí, macaco!"'. Só bem mais tarde que eu fui cair no mundo. Eu lembro quando comecei a ir na casa da Gal Costa, via as garotas sentadas com as pernas de fora, aparecendo a calcinha. Eu ficava... não escandalizado, mas envergonhado, paralisado. às vezes, tenho até vontade de voltar a essa época, parece que certas coisas vão perdendo o sabor com a maturidade.'

Chamo a atenção para o clima sado-masô de letras como Farrapo Humano e Surra de Chicote.

'São personagens e temas, até como escravidão... Existem pessoas assim, claro, que se maltratam o tempo todo... Todo mundo tem um pouquinho, já outros são superdoentes, mas 'tá coma gente'

Enquanto isso, o disco novo está quase pronto - o mais 'diversificado' de sua carreira, segundo ele. Antes de sair, ouço um funk e uma belíssima bossa, composta em Bruxelas. Ele conta da viagem com entusiasmo, como a moçada 'caiu na dança' nos três shows que deu na França. 'Me dei bem, eu queria ir faz tempo, mas fui na hora exata.'

E a última? A última é que ele quer um terno igualzinho ao de Davis Byrne em Stop Making Sense. Que os deuses o abençoem."

* O jornalista atribui a letra a Monsueto, embora o ponto de interrogação revele sua dúvida. O verso, na verdade é de Max Bulhões





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