Palavras Domesticadas

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sábado, 30 de janeiro de 2021

Hermeto Pascoal - Revista Pop (1978)


 Hermeto Pascoal sempre foi um músico que despertou curiosidade e atenção, pela forma livre e espontânea como costuma conduzir e elaborar sua música. Em sua edição nº 69, de julho de 1978, a revista Pop trazia uma matéria com Hermeto, assinada por José Emílio Rondeau:

"Para os índios Yawalapiti, do Alto Xingu, a música é um espírito que mora numa pequena oca, do 'dono da música'. O espírito vira guardião do músico, no momento em que ele toca é escolhido por ele. No Rio de Janeiro, o espírito da música mora num quarto de 10 metros quadrados de cimento frio, que dá para um banheiro ladrilhado e uma saleta menor, com janelas. É a sala de ensaios onde Hermeto Pascoal inventa seus sons loucos e, sem camisa, de short azul, chinelas, cabelos recém-presos pela mulher Ilza, avisa a  quem interessar possa:

'As pessoas vivem dizendo; 'Esse Hermeto Pascoal é um doido, se esconde naquele buraco no subúrbio, deve ter porcos e galinhas em casa, uma horta, um troço assim'. Não é nada disso: de louco só tenho o amor pela música, meus instrumentos, um viveiro de pássaros e um cachorro que faz cocô na entrada da casa e me mata de vergonha.'

Escondido em sua casinha em Senador Camará, no modesto bairro Jabour, Hermeto prepara suas alquimias sonoras, transformando em música ruídos de rua, de animais. As suas pesquisas muitas vezes nascem de um simples passeio pela rua: 'Eu estava em São Paulo para fazer uns shows, e resolvi dar um passeio pelas ruas, para ver como andava aquela cidade grande. Andei, andei, até que parei numa esquina muito movimentada, daquelas bem barulhentas, com bastante motor, buzina, sirene, apito de guarda, gente gritando, xingando, correndo de um lado pro outro. Aí descobri música naquela zorra toda. Assim: eu estava de cabelo preso e parado na esquina. Peguei e tapei os ouvidos com as mãos e fiquei assim algum tempo, com aquela zoeira toda meio abafada, mas zunindo lá fora, até que tirei as mãos dos ouvidos e levei aquele bruto choque com a cidade, com a agressão de todos os barulhos ao mesmo tempo. Aquilo ficou muito forte dentro de mim, e a partir desse contraste compus Do Feto à Vida, que seria exatamente o relato da gestante, do nascimento, do crescimento e morte. Mas ainda não terminei a música, só fiz até a hora em que o cara já é um executivo dono de uma empresa, cheio de neuroses. Parei aí'.

Louco de hospício? Ou, quem sabe, segundo a terminologia de Raul Seixas, um autêntico maluco-beleza que curte verdadeiros transes musicais com o barulho de uma simples máquina de costura: 'Tenho duas, cada uma com um tipo percussivo diferente'. Bruxo dos sons, mago de instrumentos inventados por ele mesmo, Hermeto garante que sua cabeça anda ótima: 'Às vezes eu até tenho que freá-la, porque é música saindo a toda hora, no mínimo uma por dia. Assim, nem a banda aguenta, logo eles que são todos uns caras bem mais novos do que eu...'

Quarentão assumido, canceriano convicto, Hermeto já tocou com três quartos dos melhores músicos do planeta - como Chick Corea, Alphonso Johnson, Joe Zawinul, Chester Thompson, Milton Nascimento, Miles Davis, Airto Moreira e muita gente mais. Às vezes com algumas confusões, como na gravação do álbum Charade, do cantor africano Bobby Makay: 'Isso aconteceu na Era de Cristo, é antigo mesmo. Era uma faixa pra ser tocada por catorze percussionistas ao mesmo tempo, numa região pobre, sem recursos, e os instrumentos usados foram enxadas, foices, ancinhos, essas coisas. Eram agricultores, gente da roça: imagine os catorze batucando ao mesmo tempo" Só tive um probleminha com o dono do estúdio, que não deixou que eu pendurasse o Bobby de cabeça pra baixo. Você sabia que o timbre da voz muda quando você canta de cabeça pra baixo? Pois é, mas o cara lá não deixou!'.

Dentro das muitas histórias que Hermeto tem pra contar, cabem também algumas tristezas. O caso de Miles Davis, por exemplo: 'Eu não digo que ele tenha roubado a minha música, porque ele gosta dela como se fosse um presente. Mas não mencionar meu nome como autor é uma injustiça! Só depois de três anos é que retificaram a autoria de Igrejinha (Little Church, nos Estados Unidos) para Davis e Pascoal, e isso só depois de eu ter movimentado meus advogados na América, porque senão, não sei não...' E não foi essa a única vez. Brincando, ele ameaça: 'Esperem mais um pouco e dou o nome de todos aqueles que me roubaram aqui e nos Estados Unidos'.

Eu te benzo/ eu te curo/amanhã você amanhece duro - o serra-velho (um pedaço de pau amarrado numa corda, que zumbe quando é girado no ar) acompanha a musiquinha que traz a Hermeto lembranças do tempo das Alagoas: 'Quando eu era pequeno, a criançada toda fazia assim: na quinta-feira santa, a gente escolhia uns velhinhos bem velhinhos, cavava um buraco fundo na frente da casa deles e  começava a chamar o sujeito pra que ele caísse no buraco. A gente começava a girar o serra-velho e  cantar aqueles versinhos. Não que fosse maldade, a gente não desejava a morte de ninguém. Era só uma brincadeira com música no meio'.

Criando sem parar, desde criança, Hermeto já inventou instrumentos como a gangorrafa - uma mesa de percussão com treze garrafas - e passou por alguns 'escândalos musicais'. Como em 1975, no festival Abertura, com a música Mavum Vevum Pefôco*, ou no Festival Internacional da Canção, quando foi proibido de apresentar A Matança do Porco** porque queria colocar porcos e  galinhas no palco. O que pouca gente entendeu é que era uma atitude musical, e não política; 'Mesmo quando toco instrumentos que já existem, toco de um jeito que ninguém ainda tocou, e espero o mesmo de todos os que me procuram para tocar comigo'.

Ele tem sete filhos, seis deles com o nome começando em F - 'É só dizer Fá que vem todo mundo correndo' - e prefere ficar longe da cidade para criar música. 'Se precisar, vou para mais longe ainda', ele diz, na salinha que gosta de chamar de 'escritório'. Um albino doido - para quem não entende seu trabalho - ou o melhor arranjador do mundo, segundo Gil Evans, às vezes Hermeto precisa guardar seu trabalho na gaveta durante algum tempo, até que se criem condições de mostrá-lo: 'Só agora estou mostrando músicas feitas há uns cinco ou dez anos, que até hoje meus campeões de banda acham difíceis de tocar. Só que não são difíceis. É a cabeça deles que tem que estar limpa, bonita - como eu sinto que a minha está agora. Nem sei se algum dia serei alcançado, mas isso nem vem ao caso'.
Do sertão de Pernambuco aos metrôs de Nova Iorque, gravando músicas suas ou até de seu pai (um velhinho de mais de 70 anos, Paschoal José da Costa, autor de O Galho da Roseira), o papa da música free brasileira  tem suas queixas: 'Eu fiquei calado por muito tempo, esperando que acontecesse alguma coisa, que tudo fosse aos poucos sendo descoberto pelo mundo ou que as pessoas que me fizeram mal se retratassem e vissem que não havia necessidade de nada daquilo'.

Gênio com cara de cientista louco, Hermeto conta que muitas vezes a execução de suas músicas tem uma história tão ou mais complicada do que a própria composição.: 'Foi o caso de Do Feto à Vida. A primeira e única vez que vi essa música ser apresentada foi por um coral paulista de não sei quantas pessoas, e para escrever aqueles sons todos, UNFSS...ARHHHN...TCHINN... botar tudo isso numa pauta não é moleza não, viu? E praquela gentarada ler  aquilo e se acostumar com o som... Ihhhh, bota tempo nisso...'

Quem entra na casinha do bairro Jabour logo sente que o espírito da música anda mesmo por ali, pousado nos cabelos cor de palha de Hermeto Pascoal: 'Louco, eu? Olha, minha cabeça está linda, campeão!' "



* Na verdade a música de Hermeto que participou do festival Abertura foi Porco na Festa

** A música que Hermeto concorreu no Festival Internacional da Canção se chamava Sereiarei. A Matança do Porco é título de um disco do Som Imaginário




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