Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Paulinho da Viola - Faltam Adjetivos Para o Mestre (Revista Showbizz - 1996)


 Em 1996, a gravadora Emi-Odeon relançou onze discos de Paulinho da Viola em formato CD. Na ocasião o CD representava um bom produto de vendas, e era comum as gravadoras relançarem a obra completa de alguns de seus contratados de maior prestígio. Assim foi feito com a obra primorosa de Paulinho da Viola. A revista Showbizz nº139, de fevereiro daquele ano, dedicou a coluna Replay, que tratava exatamente de relançamentos de discos naquele formato, para falar da discografia relançada de Paulinho, disco por disco, em texto de Pedro Só:

"Unanimidade genial, Paulinho da Viola é herdeiro da estirpe fidalga de Paulo da Portela, carregando na obra a sombra iluminada de monstros maiores como Nelson Cavaquinho, Cartola e Sinhô. Seus 11 primeiros discos, reeditados agora  em CD pela EMI, são um time de sonhos para todo ouvinte que se preze. Afinal, já dizia Dorival Caymmi com mais elegância, quem não gosta de samba tende ao mau-caratismo. E o samba que Paulinho da Viola apresenta nesse pacotaço é quase sempre irretocável, muitíssimo canção, valsinha e modinha, sabendo sacudir tudo como partido alto de vez em quando (ouvide o incendiário e seminal 'No Pagode do Vavá', de 1972, época em que bala perdida no Rio vinha de 'um nego que fez 13 pontos e ficou maluco de tanta alegria').

No primeiro disco, de 68, o samba aparece enfeitado com algumas orquestrações do maestro Gaya que lhe prejudicaram a desenvoltura. Mas Paulinho já exibe a soberba categoria como intérprete de Cartola, Candeia e Nelson Cavaquinho - de si mesmo, claro, nas antológicas 'Sem Ela Eu Não Vou' e 'Coisas do Mundo, Minha Nega'. Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida, de 1970, traz, além do sucesso-título, a clássica 'O Meu Pecado', de Zé Kéti, e, como bônus, a obra-prima 'Sinal Fechado'. A partir dos dois discos que lançou em 1971, ambos sem título, Paulinho alcança sua dimensão de gigante. Músico na poesia (os erres do verso 'a razão por que mando um sorriso e não corro', de 'Para Um Amor No Recife', deslizam contra sua própria natureza) e ourives de harmonias mais do que líricas ('Choro Negro'), ele ainda esbanja bom gosto na escolha de acompanhantes: a flauta de Copinha é magistral e o trio de ritmistas Marçal, Oscar Bigode - seu primo, homem que o  introduziu na Portela - e Elton Medeiros também destrói. Menino de Botafogo e adolescente em Vila Valqueire, Paulinho tem verve de sobra na crônica do subúrbio e profundidade nas reflexões melancólicas. 'Ninguém pode explicar a vida num samba curto', esquiva-se ele no metalinguístico 'Num Samba Curto'. Pura chave de ouro para a ocasião, desmentida várias vezes em LPs monumentais como A Dança da Solidão (de 1972, onde a linda composição regravada por Marisa Monte brilha timidamente à sombra das frondosas 'Meu Mundo É Hoje', de Wilson Batista, 'Acontece', de Cartola, e 'Duas Horas da Manhã, de Nelson Cavaquinho) e Nervos de Aço (de 1973, que rendeu um show histórico e concilia a moderníssima 'Comprimido' com a força tradicional de 'Não Quero Mais Amar a Ninguém', de Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda).

Paulinho da Viola, de 1975, segue no nível com as pérolas 'E A Vida Continua' (de um certo Zorba Devagar) e 'Cavaco Emprestado', do injustamente pouco lembrado Padeirinho, além do protesto estético 'Argumento' ('Não me altere o samba tanto assim'). Memórias - Cantando e Memórias - Chorando (dedicado à segunda paixão de Paulinho, o chorinho), de 1976, são celestiais.

O disco de 1978 vale por 'Coração Leviano' e 'Pelos Vinte', toda construída em metáforas sinuquísticas. Zumbido, de 1980, traz o clássico moderno 'Recomeçar' (feito com Elton Medeiros) e 'Chico Brito" - tipo a quem mestre Wilson Batista atribui 'Dizem que fuma uma erva do Norte' - pioneira do repertório hemp que o Planet bem podia regravar.
 



quarta-feira, 14 de abril de 2021

Mutantes Lança Disco ao Vivo (Hit Pop - 1976)


Em 1976 os Mutantes vivia uma segunda fase em sua carreira, mais voltado ao som progressivo tão em voga naquele período. Apesar de ter gerado críticas por ter se afastado do som que fazia nos anos 60 e início dos 70, a banda vinha realizando um bom trabalho na nova vertente. Após lançar o ótimo disco Tudo Foi Feito Pelo Sol, em 75, a banda se preparava para lançar um disco ao vivo, gravado no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio, trazendo pequenas mudanças em sua formação. Na ocasião o jornal Hit Pop, que vinha encartado na revista Pop trazia uma matéria com os Mutantes, em texto assinado por Zildo Nunes Guimarães:

"De sunga vermelha e camisa amarela, tranquilo como um guru do Himalaia, Sérgio senta-se em posição de yoga, com as pernas cruzadas sobre o sofá, e abre um sorriso calmo. 'Os Mutantes são agora uma Escola de Mistérios'. O sol quente do verão carioca invade a pequena sala de um apartamento na Gávea e ilumina as paredes forradas de quadros e gravuras com temas místicos. Lá, entre livros e gravadores, Sérgio Dias aguarda o momento de viajar para São Paulo com os outros componentes do grupo. E enquanto espera, vai explicando: 'Estou transando a filosofia Rosacruz, gosto dos mistérios seculares da Grande Pirâmide, do  faraó Akenaton, dos segredos e poderes interiores do homem. Gosto da paz de espírito que alcancei.'

Sem dúvida, um dos grupos de rock mais populares do Brasil. Muito importante na história do rock brasileiro, viveu a época sofrida dos primeiros tempos do movimento roqueiro.

'O rock brasileiro vai se cimentar numa mistura de sangue, suor e lágrimas; vai ser sólido e forte a partir do seu próprio sofrimento. O rock não está morrendo nem vai morrer. Porque é mais do que um ritmo, é todo um processo energético da juventude. desta e de todas as juventudes.'

Apesar dos milhares de aficcionados, garante que ainda é difícil fazer rock no Brasil.

'Sofremos os mais diversos tipos de pressões, desde a luta para se conseguir um teatro, a proibição dos pais que não deixam os filhos irem aos shows, até a proibição de se dançar durante os espetáculos.'

Sérgio irrita-se, abandona a tranquilidade. Não admite quando dizem que o rock está morrendo.

'O rock é o que de mais universal pintou até hoje, em termos de música, e está situado entre o clássico e o popular. O que se ouve de rock por aí, em timbres, harmonia e melodia, é pra Bach tirar o chapéu. O rock chegou pra ficar pra sempre. Pra mim é a linguagem universal da juventude, como música. E não há mentira nessa música, como não poderia deixar de ser. Se a gente não toca com o coração, o cara que está sentado à sua frente vai sacar no ato.'

Volta aos Mutantes, esquece os inimigos do rock, retorna à calma. Comenta a sabedoria dos antigos egípcios, relaciona com a nova fase assumida pelo grupo.

'Sabe, o som que fazemos hoje tem muito a ver com essa filosofia. Veja, por exemplo, o LP que gravamos pela Som Livre, ao vivo no MAM. Foi uma loucura! Conseguimos captar todo o astral liberado pelo público e produzimos um curto-circuito do primeiro ao último chakra.'

(Os chakras são os sete pontos de energia do homem, que vão do sexual ao intelectual, explica.)

'É esse o novo som dos Mutantes: nós partimos do sexual até chegar ao etéreo. O resultado é como se fosse uma relação amorosa - consciente e consentida.' "



terça-feira, 13 de abril de 2021

As Aventuras de Raul Seixas no Paraná (Jornal de Música - 1976)


 Em agosto de 1976 Raul Seixas fez uma turnê-relâmpago pelo Paraná, apresentando-se em 10 cidades em 10 dias. Nessa excursão Raul levou para acompanhá-lo três membros da banda Flamboyant: Áureo (bateria), Carlinhos (baixo) e Gabriel O'Meara (guitarra). O guitarrista O'Meara, que também fez parte do lendário Peso, e era jornalista, fez um diário da passagem de Raul pelo Paraná, e  publicou no Jornal de Música nº 22 (setembro/76):

"A turnê deveria ter começado no dia 1º de agosto, mas foi adiada por algumas semanas porque Raul Seixas teve que se hospitalizar: bombardeou os intestinos com muito álcool e acabou ficando com uma inflamação no pâncreas. Bom, mas todo mundo sabe que Raul Seixas é um malucão, que a metamorfose ambulante é a história da sua vida, etc e tal.

Eu me lembro de Raul como produtor de Jerry Adriani na CBS, onde era conhecido como Raulzito. Um cara 'caretíssimo', um ávido fã de rock & roll que não bebia, fumava, ou transava com as mulheres. Mas tinha jeito para escrever músicas interessantes e um ouvido afiado para produção.

(Aliás, seu próximo álbum vai ser produzido por ele mesmo).

Voltando à turnê: no dia 11 de agosto deixamos o Rio rumo à Curitiba, via São Paulo. Só que ficamos presos em são Paulo devido ao mau tempo. Raul levou todo mundo para comer suki-yaki num restaurante japonês.

No dia seguinte alugamos dois carros e fomos para Londrina, uma viagem de nove horas na maior chuva. Ainda bem que o show daquela noite foi cancelado, pois só havíamos tido um dia de ensaios.

Dia 13 - Sexta - Apucarana: Já que era sexta-feira 13 e eu viajava com Raul Seixas, o próprio bruxo, coloquei um pedaço de alho no bolso pra me proteger. Acordamos às 9 horas da manhã e fomos para Apucarana. Com a chuva e o frio intenso, todo mundo sentiu saudades do Rio. Dei três telefonemas para amigos.

O show foi num ginásio imenso. Apesar do frio e da chuva forte, conseguimos um bom público: 3.500 pessoas. O Flambo Trio - como fomos chamados - abriu o espetáculo. Tocamos uma música de B.B. King e uma improvisação que termina com Áureo dando um solo incrível na bateria que nunca deixa de ser aplaudido. Raul entrou com uma cara sombria e um casaco preto que o cobria do pescoço aos tornozelos. A plateia era uma mistura de estudantes e pessoas comuns da cidade. Pelo que pude notar, todos estavam de porre, inclusive nós. A gente tinha ensaiado o set do Raul naquela tarde mesmo, e fomos dependendo dele para para indicar as mudanças e acordes, Esse set incluiu Al Capone, SOS, Medo da Chuva, As Aventuras de Raul Seixas, Ouro de Tolo, 10.000 Anos Atrás, um rock & roll que misturava Roll Over Beethoven, Long Tall Sally, Ready Teddy e alguns rocks da sua própria autoria, como o Rock do Diabo. Terminamos o set com Sociedade Alternativa, onde Raul fez um discurso improvisado.

Dia 14 - Sábado - Maringá: Acordamos com um dia azul e frio. Tomamos café rapidamente e fomos para Maringá. Lemos num jornal que o nosso avião cor-de-rosa finalmente havia decolado de São Paulo e que uma das turbinas havia explodido em pleno ar. Mas conseguiu aterrissar numa boa.

Nosso show naquela noite foi basicamente o mesmo. Antes do show demos algumas entrevistas. Tudo como se fosse a mesma rotina do dia anterior. Dormimos falando da saudade do Rio.

Dia 15 - Domingo - Apucarana: Ontem aconteceu uma coisa que eu não sabia. Aparentemente alguém entrou no camarim do Raul dizendo pra 'maneirar' o seu discurso em Sociedade Alternativa. Raul me disse que esse tipo de coisa é muito comum, e que os pedidos sempre são feitos através de terceiros e nunca pela própria 'autoridade'..

Abrimos o show com Rock Me Baby, do LP de Jeff Beck chamado Truth. Aí, a pedido do Raul Seixas (ele adora Albert King), tocamos Born Under a Bad Sign. Tudo corria bem no set de Raul quando as pessoas começaram a gritar: 'Rock! Rock! Rock!'. É estranho tocar rock no Paraná e ser recebido com tanto entusiasmo. Quando o Flamboyant toca rock & roll no Rio sente muita resistência. Talvez seja esse o motivo de estarmos mudando nosso repertório e estilo para soul.

Depois do espetáculo fomos a um restaurante cheio de gente esperando por Raul. Fizemos algumas amizades e ninguém voltou pro hotel antes das 10 da manhã seguinte. Tinha sido o melhor dia.

Dia 16 - Segunda - Paranavaí: Como sempre, uma viagem sonolenta. Paramos em Maringá para almoçar na casa do Carlos Antônio, o promotor local. Essa coisa de empresário é muito confusa: Raul tem seu próprio empresário, depois vêm os empresários regionais como os Irmãos Mello, e depois os empresários locais (geralmente alguém da própria cidade). O empresário local pode ter um grêmio estudantil ou uma entidade ou sociedade independente. Cada show passa por três mãos diferentes, dando muita confusão. Nós e Raul fomos pagos sem demora, mas os Irmãos Mello tiveram que batalhar para receber sua grana, prometendo 'bailes' ou porcentagens sobre shows futuros. Haja saco.

Dia 17 - Terça - Umuarama: quando chegamos a Umuarama não havia reservas e tivemos que ficar num hotel de quarta categoria. O prefeito da cidade decretou um feriado para que os estudantes pudessem assistir o show, num cinema superlotado.

Depois do show nos convidaram pra ir a uma boate. No fim era mesmo um bordel, mas mesmo assim bebemos e dançamos com as mulheres. Passei o tempo todo procurando a Gabriela. Esse lugar só podia ser o Bataclan! Tinha até um juiz e várias figuras importantes da cidade. No fim da noite a madame fechou a casa e só ficamos nós. Tem um conjunto que fica lá tocando e resolvemos fazer um show improvisado. Carlinhos tocou órgão, eu toquei baixo e Raul tocou guitarra. O baterista foi mesmo o do conjunto da casa. (Áureo - O Sério- brigou comigo, porque eu disse que John Lennon era 'muito papo e pouco som', e foi embora pro hotel). Quando esse som terminou, eu e o Carlinhos fomos embora. O resto do pessoal curtiu os prazeres do salão de bacanal. E de graça!

Dia 18 - Quarta - Campo Mourão: Esse show também foi num cinema, mas choveu tanto que tivemos só metade do público previsto.

Depois do show, eu, Áureo e Carlinhos fomos pro hotel jogar cartas. Como não havia ninguém no bar, sentamos perto do balcão e nos servimos de birita à vontade. Só me lembro que fui carregado pro quarto pelo secretário de Raul. E o Áureo me apresentou uma conta de Cr$ 200, dizendo que era o que eu havia perdido pra ele no baralho!

Dia 19 - Quinta - Goiorê: Para chegar a Goiorê, viajamos em estradas de terra durante três horas. Pensei que a gente estivesse em Doge City, no faroeste. Todo mundo andava armado. O show foi no teatro mais caindo aos pedaços que já vi, mas a plateia - composta de vaqueiros, estudantes e prostitutas - foi muito boa. Fomos convidados pra ir a uma churrascaria, mas só o Raul aceitou o convite. Áureo é vegetariano e, sem a gente perceber, estava nos convertendo. Há três dias não comíamos carne. Raul apareceu depois pra nos levar a outra boate. O Áureo, como sempre, ficou no hotel.

Os estudantes sumiram com o dinheiro do show. Mello só recebeu às 5 horas da madrugada, depois de muita astúcia e conversa.

Dia 20 - Sexta - Marechal Rondon: Viajamos 6 horas numa estrada de terra pra chegar a Marechal Rondon. O show foi num clube, às 2 horas da manhã. O pessoal mais velho esperava que Raul desse um show como Moacyr Franco havia feito há algumas semanas. Não foi bem assim. Os mais jovens foram para a pista e dançaram freneticamente. Os mais velhos, nas mesas, não enxergavam nada. Aí o Raul fez um discurso bem forte que arrancou elogios da multidão mas chocou completamente os velhos e os diretores do clube.

Os promotores, diretores e demais membros da comunidade de Marechal Rondon queriam linchar o Raul depois do espetáculo. Alguns comentários: 'Subversivo!' 'Grosseiro!' 'Não vamos pagar, nos recusamos!' 'Quem é esse tal de Raul?'

21 - Sáb. 22 - Dom - Cascavel: Tocamos em Cascavel, onde encontrei a japonesa mais bonita que já vi. O repertório agora incluía Be-Bop-A-Lula (onde eu fazia um dueto tipo Everly Brothers com Raul)., Rock Around The Clock e Tente Outra Vez. Fechamos a turnê com chave de ouro."




quarta-feira, 7 de abril de 2021

Arnaldo Antunes (Revista Roll - 1987)


 Em 1987 Arnaldo Antunes ainda era membro dos Titãs, e já realizava trabalhos paralelos, como o de poesia. Na época, a revista Roll, que falava de rock, nacional e estrangeiro, tinha uma seção chamada Primeira Pessoa, em que determinada personalidade ligada à música dava opinião e se expressava sobre diferentes assuntos. Em sua edição nº 44 a revista convidou Arnaldo, que falou sobre seu primeiro livro de poesias, Psia, seus hábitos de leitura, música e religião. Leia abaixo:

"Psia: É uma compressão da palavra poesia, um hiato a menos. Mas também é o feminino de psiu, que serve tanto para chamar como para pedir silêncio. Pode ser também uma coisa entre a piscina e a pia (risos). É uma coisa que sugere tudo isso, uma palavra inventada.

O concretismo que as pessoas querem ver no livro, principalmente no Rio de Janeiro, apenas pela questão dos tipos, da preocupação gráfica é uma coisa meio tola. Rotular uma coisa de concreta hoje em dia fica meio sem sentido. Mesmo a obra de Augusto de Campos não é concretista hoje em dia, já aponta pra vários caminhos. Querer saber se uma coisa fecha como concretismo ou não, vem muito dessa cruzada que esses idiotas estão fazendo, tipo Ferreira Gullar, Afonso Romano de Sant'Anna, que são caras de uma poesia fraquíssima, condescendente ao gosto médio, contra o concretismo. Meu livro tem uma influência do concretismo como tem influência de outras coisas, mas rotular como poesia concreta é um absurdo. Assim como a canção tem a coisa do texto associado à melodia, à sonoridade, a poesia impressa no papel tem a coisa associada ao aspecto gráfico que não pode ser desprezado.

Leitura: A nível de poesia, desde os clássicos, A Divina Comédia, de Dante, até a coisa mais moderna, o último livro de Paulo Leminski ou do José Paulo Paes. Geralmente eu procuro a poesia onde a forma tem um significado, me oriente eliminando um pouco essa coisa que eu não gosto que é essa poesia mais retórica, mais verborrágica, e procurando sempre um dado de síntese, de preocupação formal construtiva, de estranheza. Claro que existem os romances, as obras de teoria literária, de linguística...

Performance: Eu trabalhei com performance em São Paulo, isso há cinco anos, agora tem essa onda de performance no Rio que é uma babaquice, uma coisa totalmente diluída, que chegou atrasada. Um cara lê poesia alto no palco e outro toca guitarra e as pessoas acham que isso é performance... Performance tem uma coisa definida como estética, é uma ocorrência no tempo, é uma obra que tem uma estranheza com o ato que você está criando.

África: A África sempre esteve no rock'n roll, é o berço da música negra, do rock, do blues, dos spirituals americanos. Agora, isso da onda da música africana, a gente não compactua; nem com essa onda nem com nenhuma outra, porque esse tipo de leitura é uma coisa muito pobre. Não existe o caminho, existem os caminhos. Esse papo de 'agora é a África' é uma bobagem, a gente nunca teve isso.

Rock Tupi: Eu acho que está legal porque está começando a saber tirar som no Brasil. A sonoridade de rock nos primeiros LPs tinha uma qualidade muito ruim. Além disso, tem muita banda lançando seu terceiro ou quarto LP, já não existe mais aquela dúvida 'Ah, será que o rock é efêmero?', isso já se desfez. Algumas bandas sumiram, porque era pra sumir mesmo, e outras estão dando continuidade a seu trabalho. Há uma diversidade muito grande, o que os Titãs estão fazendo não tem nada a ver com que os Paralamas estão fazendo, com o que a Legião está fazendo, como que o Camisa está fazendo, cada um está apontando prum lado. Apesar de diferentes, acho o trabalho dessas bandas de muita qualidade. Não acredito no rock nacional como uma linha estética.

Religião: Eu não tenho uma coisa de religião como instituição, eu tenho uma religiosidade. Acho que está muito deturpada pro ocidental a noção de religião. Ela não está presente no dia-a-dia do cara, perdeu todo o sentido de intensidade que o sentimento religioso deve ter. Essa compartimentação que o ocidental criou, a hora do culto,  a hora do lazer, a hora do trabalho, é uma coisa muito degenerativa; a espécie humana estagnou nesse tipo de procedimento, o que é muito pouco produtivo. Meu compromisso é com uma religiosidade, com a maneira de me portar aqui no planeta o tempo todo. É assim que eu vejo. Eu posso ler um salmo de Davi e aquilo me arrebatar até às lágrimas."



domingo, 4 de abril de 2021

A Feminina Joyce (Revista Música - 1980)


 Joyce é uma cantora e compositora que sempre apresentou um trabalho de grande qualidade, e lançou discos que revelavam todo o seu talento, desde os anos 60, quando não era muito comum mulheres se lançarem como compositoras. Ao longo dos anos o trabalho de Joyce só foi amadurecendo e seu nome ganhando cada vez  mais prestígio. Em 1980, a cantora lançava o álbum, Feminina, e na ocasião a revista Música nº 43 trazia uma matéria com Joyce, falando de sua carreira e de seu novo disco. A matéria é assinada por Valéria Fontenele:

"Essa canção está no ouvido do Brasil. 'O Brasil não é surdo', mas durante quase 13 anos não o permitiram ouvir o canto de Joyce, que teve que se banir do país para sobreviver de sua arte. Ela resistiu. Várias foram as tentativas. E ela resistiu. E nesse momento é um festival que nos mostra sua voz melódica, seu violão, sua personalidade forte de mulher, de músico. Joyce agradou, e muito. O festival não. É apenas mais um programa da Rede Globo de Televisão, sem nenhuma verdade - longe da realidade dos festivais de outrora -, simulado, ou melhor, comprado pelas gravadoras para exibir seus contratados. Nenhuma emoção. Mas isso não vem ao caso. Joyce vem. E ela diz: 'só espero não receber nenhum prêmio'.

'Eu passei 13 anos sem gravar um disco individual. O trabalho vinha sendo recusado pelas gravadoras, eu ia sendo  gravada por outros intérpretes, e do final de 78 pra cá, as gravações aconteceram sistematicamente.'. Joyce fez sucesso na voz de Milton Nascimento e Boca Livre, 'Mistérios'; Elis Regina, 'Essa Mulher'; Maria Bethânia, 'Da Cor Brasileira'; Joana, 'Coração de Criança'; Quarteto em Cy, 'Feminina'; Ney Matogrosso, 'Ardente'; Viva Voz, 'Revendo Amigos' e 'Lado Avesso'. ' Mas mesmo assim estava difícil. Eu já tinha reservado estúdio para gravar esse elepê 'Feminina', com o mesmo repertório e músicos, quando a EMI-Odeon me convidou para fazer o disco com seu selo. Naquele momento eu senti que se fizesse um disco pela gravadora não iria fazer uso dos músicos sem pagá-los e resolvi aceitar. O disco foi gravado em apenas duas semanas'.

'A voz e o violão foram gravados juntos. Eu sou um pouco aluna de João, pois para mim a voz e o violão são duas coisas que respiram juntas, fluem melodicamente, unissonamente'. Em 'Feminina' Joyce está por inteira, num trabalho de composição, instrumentação e interpretação. Dez faixas, todas assinadas por ela, que divide parceria com Ana Terra em 'Essa Mulher' e 'Da Cor Brasileira'; com Fernando Leporace, em 'Coração Criança', e com Maurício Maestro na canção 'Mistérios'. 'Toda parceria para mim é uma coisa esporádica. Meu lance é eventualmente uma parceria. No caso do Maurício é uma parceria bastante musical. Com Ana eu faço a música'.

'Feminina é um trabalho que no fundo tinha que ser feito desde o início, mas dificilmente se dá à mulher uma chance de dirigir seu trabalho num estúdio.' E conclui sobre a posição/exposição feminina na MPB: 'Eu vejo essa explosão como fruto da batalha silenciosa que a gente vem travando nesse tempo todo. E acho que nós devemos procurar nos cercar da alguma forma...'

Que se encerre essa reportagem com as sensíveis palavras de Joyce ditas em seu release. 'Nem sempre uma reta é o melhor caminho entre dois pontos. Pode ser o mais curto, mas não é o único possível. Se assim não fosse, eu não teria feito esse disco aqui e agora, numa trajetória que foi mais ou menos assim: Brasil-Uruguai-Itália-França-Estados Unidos-Brasil. Não foi um caminho escolhido, mas foi onde a sobrevivência me levou. Já que ficar estava difícil.

Pertenço a duas classes exploradoras tradicionalmente, pois antes de tudo, sou mulher e sou músico. Ambos se soltaram à vontade nesse disco, e o trabalho fluiu livre e alegre, o músico e a mulher forças emergentes no mundo.

Houve momentos duros. Agradeço e dedico este trabalho às pessoas que nele acreditaram nos tempos difíceis.

Agradeço também aos que não acreditaram, pois graças a estes, pude exercitar três enormes virtudes: paciência, paciência, paciência' "


sexta-feira, 2 de abril de 2021

Mahavishnu John McLaughlin, o Iluminado


 John McLaughlin é um dos melhores guitarristas do estilo fusion. Não é à toa que Miles Davis, um músico sempre muito exigente na escolha de músicos que formavam sua banda, escolheu McLaughlin quando resolveu eletrificar seu som a partir do disco Bitches Brew, e até batizou uma das músicas do disco com o nome do  guitarrista. O jornal Rolling Stone, edição brasileira, que circulou no início dos anos 70, publicou em seu nº 7 (maio de 72) a tradução de uma matéria sobre John McLaughlin, escrita pelo jornalista americano Stephen Davis, que fala sobre a vida do guitarrista e o seu envolvimento com um guru indiano chamado Sri Chanmoy Kumar Ghose, que foi inclusive, quem lhe batizou como Mahavishnu John Mclaughlin. Abaixo, a matéria:

"Um dos melhores guitarristas do mundo prefere ser conhecido como discípulo do guru indiano Sri Chinmoy Kumar Ghose. 'É por causa dele que sou quem sou e toco minha música dessa maneira. Ele é um ser divino'.

Jonh McLaughlin é um guitarrista elétrico, talvez um dos melhores da praça, e o líder da Mahavishnu Orchestra. Cada nota que ele e seus quatro músicos tocam, parecem se relacionar diretamente com a alma do ouvinte, e com as suas aspirações anteriores. Sua música é tão barulhenta quanto a do Modern Jazz Quartet, e contém uma mensagem de devoção que é claramente compreendida por qualquer um que veja as expressões de êxtase que passam pelo rosto de John quando ele se inclina para trás e manda uma oração endereçada ao coração de Deus.

John McLaughlin - Mahavishnu, como ele prefere ser chamado - diz que tudo aconteceu depois que descobriu seu mestre e guru, Sri Chanmoy Kumar Ghose. McLaughlin nasceu em 1942 numa pequena cidade de Yorkshire, na Inglaterra. Sua mãe era violinista e quando ele tinha oito anos já tocava piano e violino. Começou com a guitarra aos onze e se tornou profissional aos dezesseis. Logo depois foi para Londres, onde tocou com vários conjuntos até 1968, quando sua grande chance aconteceu. Ele já tinha tocado em várias jams com amigos, todos músicos de rock que queriam tocar jazz - Jack Bruce no baixo, Kick Keckstall-Smith na flauta, e John Hiseman na bateria. Algumas dessas sessões foram gravadas e editadas num LP de Jack Bruce chamado Things We Like. Mas em fevereiro de 69 essas fitas e mais um disco que McLaughlin tinha gravado, Extrapolation, chamaram a atenção do baterista Tony Williams, que estava saindo do conjunto de Miles Davis para formar o seu.

'Tony me chamou na Inglaterra', conta Mahavishnu, 'e perguntou se eu queria ir aos Estados Unidos tocar. Cheguei no dia seguinte, e começamos a ensaiar. Miles Davis me ouviu tocando, e gostou.'

A opinião de Miles sobre Mahavishnu é mais precisa: 'Ele é incrível, esse cara. Tem um conhecimento interior. Ele toca a partir do meio-ambiente, e a seguir parte para a música interior, vinda do seu próprio conhecimento e sabedoria.'

Assim, dois dias depois de chegar aos Estados Unidos, John tomou parte num dos mais bonitos e importantes discos de Miles Davis: A Silent Way. Depois disso ingressou no novo conjunto de Tony Williams, Tony Williams Lifetime, além de participar de mais três álbuns posteriores de Miles. Isso tudo numa época em que guitarristas de heavy rock eram associados com anfetaminas e desordem, e Mahavishnu fazia um som que vinha do cérebro e do espírito quanto dos intestinos e do fígado. Mais importante é que sua música tem algo a dizer além da satisfação dos ouvidos.

Sri Chinmoy Kumar Ghose é um guru hindu que veio para o ocidente há sete anos atrás, para 'servir aos que buscam a auto-realização'. Fundou centros de meditação nos Estados Unidos, Europa, Caribe e no próprio Oriente, tendo agora entre 400 e 500 seguidores no mundo inteiro. Atualmente vive em Queens, um subúrbio nova-iorquino de classe média. John e sua esposa conheceram-no há dois anos atrás, e depois de um período de teste e dúvida, tornaram-se discípulos e membros da comunidade espiritual liderada por Sri. Este rebatizou-os com nomes de deuses hindus: Mahavishnu e Mahalakshmi, que têm as qualidades de divina compaixão e justiça.

Ao mesmo tempo, Mahavishnu evolui junto com sua música. Depois que saiu do grupo de Tony Williams fez um álbum cuja capa era uma fotografia de Sri, e que contava com a participação de alguns dos melhores músicos de jazz do país. Esse disco confirmou definitivamente o talento e o domínio de Mahavishnu sobre sua música, e ao mesmo tempo deixou claro para quem quer que o ouvisse que a técnica é apenas um degrau na escala. Afinal, o título do álbum é My Goal's Beyond.

Ao mesmo tempo, ele e sua esposa cantavam nas igrejas e nos vários centros de meditação de Sri. Em outubro do ano passado deram um concerto grátis na velha Memorial Church de Harvard. Vestidos com longas túnicas e descalços, eles se sentaram em posição de lótus sobre o tapete vermelho que fica em frente ao altar, e cantaram para uma audiência receptiva e pasmada, que de repente se encontrou envolvida pela música e pelo clima, mal tinha começado o espetáculo.

'Sabe, eu sou discípulo e ele é meu mestre', diz Mahavishnu se referindo a Sri. 'É por causa dele que sou quem sou e toco a minha música dessa maneira e não de outra. Estou imerso nele, e ele é um ser divino'.

Fiquei muito satisfeito em saber que havia um Deus vivo morando em Queens - tão perto. Para os desavisados, aqui fica a notícia; John McLaughlin tem certeza de que Deus mora em Queens. Ou um deus, pelo menos.

'Oh, sim, moramos perto dele, em Queens. Nós entendemos que não podemos abandonar as cidades: o campo já está perfeito sem nós, são as cidades que precisam de luz, desesperadamente.'

'Depois que deixei Tony Williams, ficou  um buraco em minha vida. Eu ia entrar para o conjunto de Miles Davis, mas tinha sempre alguma coisa atrapalhando, e Miles me disse que eu devia formar meu próprio grupo. Sri também disse a mesma coisa, portanto concordei. Convidei Billy Cobhan, baterista, Jerry Goodman, violinista, Rick Laird, baixo, e Jam Hammer, pianista. Uma unidade musical completa: estava formada a Mahavishnu Orchestra'.

Nessa noite o conjunto se apresentou, e eu os ouvi pela primeira vez. São maravilhosos. A plateia novamente respondeu à torrente de música psíquica e religiosa com uma ovação de cinco minutos. E enquanto aplaudiam, Mahavishnu John McLaughlin, instrumento de Deus, agradeceu várias vezes a audiência, com os olhos fechados, absorvendo o fluxo de energia que a plateia enviava, para substituir aquela que a plateia enviava, para substituir aquela que ele tão generosamente tinha acabado de despender."