Palavras Domesticadas

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domingo, 31 de janeiro de 2021

Cazuza, a Ovelha Negra do Rock (Revista Roll - 1986)


 Em 1986 Cazuza iniciava sua carreira-solo, após deixar o Barão Vermelho. Já tendo um trabalho de compositor reconhecido por vários medalhões da MPB, Cazuza lançava seu primeiro disco individual, cuja faixa-título Exagerado, foi um de seus maiores sucessos. A revista especializada em rock, Roll,  em seu nº 28 trazia uma matéria com Cazuza, assinada por Luiz Carlos Mansur:

"Cazuza chega atrasadíssimo de um dia na praia, mas disposto a abrir o verbo. Diante da magnífica visão do Jóquei Clube e da Lagoa, em seu novo apartamento, iniciamos nosso papo e lhe pergunto sobre o súbito estouro de sua carreira-solo - que decolou direto para os píncaros da glória, imediatamente depois do lançamento do primeiro LP.

'Eu cheguei a achar que iam me vuduzar bastante, depois da minha saída do Barão. Mas eu já tinha uma imagem favorável, por parte da imprensa, desde a época do meu trabalho com o grupo. E quando saiu o disco, as críticas foram todas favoráveis, a reação foi muito boa. Acho que comecei com o pé direito'.

Quanto ao relacionamento com o Barão, não há queixas, muito pelo contrário, 'Tá genial, ótimo. Tenho ido aos shows deles, tenho composto com o Dé (baixista)... É uma coisa que eu não fazia quando estava no Barão, e agora estamos compondo... E eu acho genial o Frejat cantando, sempre dei força pra ele cantar. Inclusive nos shows era ele quem puxava a voz, a sua emissão é parecida com a minha...'

Uma  característica do Barão, e também de Cazuza, sempre foi a fidelidade ao blues, veio básico do rock. Acrescente-se a isso uma temática fortemente marcada pela influência de grandes nomes da nossa música (geralmente marginalizados pelos roqueiros) como Lupiscínio Rodrigues, por exemplo, e temos um trabalho original na nova safra de rock in Brazil. Na verdade, Cazuza (e o Barão) estão muito mais próximos de uma suposta 'linha evolutiva' do rock brasileiro do que outras bandas de sucesso atualmente.

'Eu sempre ouvi muito Lupiscínio, Angela Maria, as grandes damas do blues, como Billie Holiday. E confesso que realmente não estou por dentro do rock contemporâneo. Se você me pedir pra identificar uma dessas bandas inglesas novas, não vou conseguir'. Sem dúvida, sua cabeça já foi feita há bastante tempo. Tanto que, entre as inúmeras participações especiais que ele tem feito em discos alheios, destacam-se as do LP de Elza Soares e do novíssimo de Celso Blues Boy (na faixa 'Marginal')

Essa história de 'exagerado' é mesmo autobiográfica? 'Olha, essa música é mais uma leitura sobre essa coisa do derramamento, da paixão, e é quase como uma brincadeira em cima disso. Essa letra tem muito a ver com o lance da relação passional, que você vê muito retratado no blues, no samba-canção. E eu brinco um pouco com essa coisa toda'...

Já 'Medieval', com sua letra brilhante ('será que eu sou medieval?/ baby, eu me acho um cara tão atual/ na onda da nova idade média/ na mídia da novidade média') tem despertado muitas polêmicas por aí... Você é medieval, Caza? 'Eu sou de uma geração que pegou as consequências daquela agitação toda dos anos 60, revolução sexual, etc. E o que eu tenho visto hoje em dia é que as pessoas estão voltando a se colocar em posições muito rígidas, demarcadas, quando antes havia um jogo de cintura maior. É nesse retorno que eu vejo pintado a tal da 'Nova Idade Média'.

Uma coisa que chama a atenção no primeiro LP solo de Cazuza é o flagrante descompasso entre algumas letras (fortíssimas) e o arranjo das músicas 'leves' demais). Saudades do Barão? 'Não, isso é proposital mesmo. Eu quis experimentar colocar letras bem fortes em cima de músicas não tão pesadas. Mas não é uma coisa presente no disco inteiro. Em 'Só  As Mães São Felizes' (mais uma vítima da 'extinta' censura neorepublicana) já é aquela coisa bem arrastada, pesada mesmo...'

Os shows superproduzidos (ou pelo menos produzidos) devem ser, a partir de agora, a tônica do trabalho da maioria dos rock'n rollers nativos. Principalmente depois do pontapé inicial dado pelo RPM. Mas não é esse o caminho de nosso amigo. 'Não faz muito meu gênero esse tipo de coisa. Eu não conseguiria fazer um show todo dirigido, prefiro ir cantando e o canhão de luz me seguindo, se for o caso. Mas acho ótimo isso do RPM, sou muito amigo do Paulo Ricardo, adoro as coisas que ele escreve. Isso desde o tempo em que ele era crítico' (pra quem não sabe, ele atendia pelo nome de Paulo Ricardo Medeiros).

Cazuza consegue se relacionar otimamente tanto com os maiores expoentes da nova linguagem rock brasileira como os bastiões da MPB. E é de Gilberto Gil, patrono do rock in Brazil, a melhor definição que Caza encontra para suas letras. 'Ele disse que o que eu escrevo revela que tenho uma grande piedade pelo ser humano. Isso me deixou emocionado, foi o melhor elogio que poderiam me fazer'.

Para os shows que correrão o Brasil este ano, Cazuza e sua banda ensaiaram exaustivamente. 'É ideal você ter uma banda fixa, o seu trabalho rende muito mais. Cazuza vai deixar de ser uma marca pessoal para passar a designar o trabalho da banda como um todo'. A banda é praticamente a mesma do disco, à exceção do tecladista Nico Resende. Como o show do Parque Lage acabou sendo cancelado (por imposição da 'lei'), ficamos restritos à aparição no 'Mixto Quente'* e ao show no Canecão.

No mais, já com a agradável presença do Ezequiel Neves, mito do rock nacional e uma espécie de mentor espiritual de Cazuza (e do Barão), deixamos a tarde se esvair enquanto nosso herói preparava-se para o ensaio noturno. Na saída, o rádio do carro, naturalmente, tocava 'Exagerado'. A toda."
 

* Programa dominical da Globo, gravado em shows montados na praia


 


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