Kind Of Blue, uma das obras-primas de Miles Davis, ganhou uma resenha na revista musical Qualis nº 9, de 1992, em matéria assinada por Vera Fonseca. Na ocasião, ainda nos primórdios da era do CD, o disco estava sendo lançado nesse formato no Brasil, e ganhou uma resenha especial. Segue abaixo a transcrição da matéria:
"Esta é a gravação mais influente da história do jazz. Para os que já possuem o disco em vinil, vale a pena adquirir o CD, que parece outra obra. O processo digital abre a oportunidade de se escutar plenamente as mudanças estéticas que Miles vinha ensaiando desde o álbum Milestones.
Miles Davis trabalhava formas básicas no ano que antecedeu a gravação de Kind Of Blue. Em dezembro de 58, numa entrevista publicada no Jazz Review, o trompetista se remeteu ao blues como fonte de simplicidade de formas, e desfechou com seu humor característico: "não quero que se escreva coisas muito difíceis para a banda, os músicos travam." Na mesma entrevista também disse estar estudando atenciosamente as escalas pouco ocidentais de Khatchaturian. E o álbum é exatamente a concretização deste pensamento.
Kind Of Blue também é importante historicamente por ser a gravação de uma performance praticamente espontânea. Todas as músicas foram gravadas num take só e os músicos nunca haviam tocado aquelas obras antes.
Foram dez meses de retiro até que Miles, no dia 2 de março de 59, entrou no estúdio sem nenhum material escrito para o sexteto. Apenas o conceito do que o disco deveria ser estava elaborado na sua mente. As indicações gerais sobre o que seria tocado foram delineadas poucas horas antes do início da sessão, com a exceção da música 'All Blue'. Mas até mesmo essa peça, que ele vinha trabalhando havia seis meses, mudou no dia da gravação. 'All Blue' havia sido escrita em 4/4, mas instantes antes de gravá-la Miles mudou para 3/4.
As cinco composições do disco foram gravadas em duas sessões, na ordem em que aparecem no disco. Na primeira sessão, em março, foram postas as trilhas finais de 'So What', 'Freddie Freeloader', fechando com 'All Blue'. Na segunda sessão, um mês depois, registraram 'Blue In Green' e 'Flamengo Sketches', da mesma maneira inesperada.
Miles Davis era imprevisível tanto na elaboração das músicas quanto na escolha dos músicos. Na gravação de Kind Of Blue o caos parecia estar lançado mesmo antes do sexteto aquecer os instrumentos. Sem aviso prévio, ele chamara dois pianistas para a gravação - o novo integrante Wynton Kelly e Bill Evans, que havia deixado a banda alguns meses antes. Houve um certo mal estar, pois o novato Kelly, pouco acostumado ao jeito de ser de Miles, pensou ter sido dispensado do célebre grupo que reunia Cannonball Adderley, Jimmy Cobb e John Coltrane. Na maioria das gravações Kelly e Evans raramente tocam juntos. No entanto, ao ao escutar o disco percebe que o blues de Kelly e os arpejos de Evans na harmonia eram componentes indispensáveis da ideia de Miles.
A volta às formas básicas que marca este disco deu à música de Miles uma nova dimensão meditativa. Com a redução de variantes harmônicas e escalas, foi possível atingir um estado hipnótico que permitia uma performance mais solta por parte dos músicos.
Toda a obra segue o clima estabelecido na primeira faixa do disco, 'So What', com um andamento médio, sem pressa. O inédito nessa música é que o baixo teve a tarefa de liderar, com frases melódicas, as chamadas a que os outros instrumentos respondem, sempre mantendo a simplicidade, usando poucas notas e harmonias básicas. O título da trilha 'So What' - 'e daí', frase muito usada por Miles em resposta aos elogio de fãs - surgiu da seguinte maneira: um instrumento dava a chamada e o regente respondia 'so what', seguindo o princípio de chamada-e-reposta dos spirituals.
A segunda peça, 'Freddie Freeloader', é blues absolutamente básico tocado em si bemol. Com um sistema onde o tema é dado através das respostas de duas notas harmonizadas, esse blues tradicional transformou-se numa peça requintada. 'All Blue' explora outras fronteiras. Miles brinca com a repetição harmonizada de apenas três notas. A tensão musical é levada pelo tempo em que essas notas permanecem, mais curtas ou mais longas, causando um efeito melódico curioso e permitindo que os solos ganhem uma nova textura sobre a música. 'Blue In Green', a peça que mais destaca a atuação de Bill Evans, tem uma história polêmica: Miles havia dado a Evans a missão de expandir dois acordes: sol menor e lá sustenido. A elaboração minuciosa da peça foi de Evans. Contudo Miles o direcionou como se o próprio Evans fosse parte do efeito do instrumento e assinou a autoria da peça. A balada 'Flamengo Sketches' segue os mesmos preceitos de economia absoluta de notas e sons, e serve como mais um exemplo da consciência em que tudo foi arranjado, inclusive a ordem sequencial dos solos: Coltrane, pós Miles.
Embora alguns puristas possam reclamar do sacrilégio que representa a remixagem digital de uma obra como essa, o CD ADD de Kind Of Blue consegue valorizar o original. Ressalta a tessitura dos instrumentos, disseca os arranjos em seus menores detalhes, como o uso de efeitos diferentes que conferem voz própria a cada composição. O CD também ajuda a distinguir melhor os harmônicos, assim como as nuances do efeito de 'mute' que Miles usa aplicando um abafador sobre a boca do trompete. Por fim, o disco ganha certa coerência na releitura digital, que ressalta a lógica do começo, meio e fim imaginada por Miles."
Eu sempre gostei do som do CD,superior ao vinil,para o meu gosto.
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