Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Clube da Esquina - Histórias da Gravação (International Magazine - 2004)


 O Clube da Esquina é um disco clássico e histórico. Todo mundo que gosta de música sabe disso. Gravado em 1972, o disco é cultuado e sempre lembrado quando se fala dos grandes discos já lançados no Brasil. O jornal musical International Magazine nº 107, de novembro de 2004, em matéria assinada por Marcelo Sanches conta histórias da gravação e divulgação dessa grande obra:

"No exterior, a imprensa especializada vive comemorando datas de lançamento dos discos importantes de sua música popular. Aqui no Brasil a gente repete o hábito, mas normalmente falando dos álbuns importados também, esquecendo que a MPB possui verdadeiras obras-primas que nada ficam devendo aos 'Pepper's' e 'Pet Sounds' da vida. Alguém se lembra que há 32 anos atrás o antológico 'Clube da Esquina' foi lançado?

Em 1972, Milton Nascimento ainda estava longe de um reconhecimento popular. Ele, Lô, Beto Guedes e um amigo estavam morando em um apartamento no bairro do Jardim Botânico, no Rio, mas tiveram de mudar-se dali por causa das constantes reclamações dos vizinhos que não aceitavam 'aquele bando de cabeludos entrando e saindo a todo instante'. A saída para esse 'incidente' foi oferecida temporariamente pela EMI-Odeon, que havia alugado uma casa de praia para que Milton e os seus músicos ensaiassem as novas canções que entrariam no disco que viria a ser gravado. Nesta casa, em Mar Azul, próxima ao Rio, toda a turma de músicos permaneceu morando por dois meses, ensaiando os temas e, claro, bebendo uma quantidade imensurável de  cervejas, whisky e tudo o mais que pudesse ser ingerido. Lá estavam Wagner Tiso, Zé Rodrix, Toninho Horta, Fredera Luis Alves, Tavito, Naná Vasconcelos, Beto Guedes, Lô Borges, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Roberto Silva, Novelli, Beto Guedes e, claro, Milton.

Galera reunida

Depois do período de ensaios, o grupo partiu para os estúdios da Odeon, no Rio, em plena Cinelândia, para iniciar as gravações. De início, Milton enfrentou a resistência da gravadora para que fosse gravado material para um álbum duplo. Aceita a ideia, o disco começou a ser gravado, com acréscimo das participações de Eumir Deodato, Paulo Moura e Nelson Angelo. Ainda durante as gravações, Milton tinha alguns shows agendados, como o do MAM, numa noite qualquer no início de 72. Porém, como relata Márcio Borges no livro 'Os Sonhos Não Envelhecem', o excesso de bebida fez com que o compositor entrasse no palco e desmaiasse em cima da bateria antes de cantar uma só nota!

A solução encontrada pelo guitarrista Fredera foi fazer um discurso acusando a repressão militar em vigência pelo stress de Milton! Quando chegou a hora de fazer a temporada de lançamento do álbum, o teatro escolhido para a série de shows foi o obscuro Teatro da Cruzada Eucarística São Sebastião, na periferia do Rio de Janeiro. Plateia com vários lugares vagos, o primeiro show foi tenso, com os músicos esquecendo suas partes,, Milton esquecendo as letras, Lô e Beto Guedes nervosos e tensos, Ronaldo Bastos brigando com o empresário de Milton, um certo 'Mané Gato', enfim, um caos devidamente fuzilado pela crítica, que julgou tudo muito precário e amadorístico. Nas apresentações seguintes, vários acontecimentos pitorescos deixaram transparecer a tensão e as  condições realmente precárias do grupo: Tavito e o baterista Robertinho Silva tiveram ataques histéricos em pleno palco, para horror do pequeno público presente, sendo retirados aos berros e urros pelos amigos. Os shows só foram se ajustar na medida em que a temporada avançava. O álbum também não escapou das críticas, que acusavam Milton de copiar Caetano Veloso e Chico Buarque, de demonstrar uma suposta desorientação musical e utilizar letras incompreensíveis demais, além de classificar a voz de Lô Borges, parceiro de Milton no disco, de fraca e inconsistente!

Lô Borges

Bem, quase toda a obra importante provoca controvérsias em seu tempo de chegada, o que torna compreensível a reação ao LP duplo 'Clube da Esquina'. O álbum veio consolidar o ecletismo proposto pela obra de Milton & Cia, mas  deixou nítida a marca da música dos Beatles em grande parte das canções. Em 'Um Gosto de Sol', depois da belíssima interpretação de Milton, acompanhado apenas de um piano, a faixa se encerra com um imponente e emocionado arranjo de cordas, utilizando a mesma melodia de 'Cais', pressupondo uma ligação temática entre ambas. Esta seria uma marca da música de Milton, forte sinal da influência dos Fab da fase 'Sgt Pepper's': uma canção dividida entre duas seções, com arranjos distintos, intercalando o erudito e o popular.

Lô Borges surpreendeu com temas complexos demais para sua idade de 16 anos, fazendo de seu 'Trem Azul' uma das canções mais populares do álbum, além de 'Um Girassol da Cor do Seu Cabelo', parcerias com o irmão Márcio. Para outros críticos especializados em MPB, o 'Clube' é o disco mais tropicalista já gravado no país. A poesia espalhada pelas canções, divididas entre os parceiros habituais como Fernando Brant, Murilo Antunes e Márcio Borges, vai da simples recordação de uma cena interiorana observada num quarto de hotel ('Paisagem da Janela'), pelo cinema ('Tudo O Que Você Queria Ser', inspirada numa cena do filme 'Viva Zapata', de Elia Kazam) até fortes referências ao que acontecia nos porões da ditadura militar, já que os compositores estavam próximos dos acontecimentos, pois tinham amigos exilados e foragidos. Das canções que abordam essa questão, 'San Vicente' e 'Um Gosto de Sol' são as mais cortantes e poéticas. Além das tristes memórias da ditadura, o álbum também evoca uma fase em que havia mais união e amizade entre artistas e a juventude em geral. O clima de comunidade e irmandade da época foi um fator imprescindível para que essas canções nascessem.

O LP teve um impacto bastante salutar em outros artistas e intérpretes, principalmente em Elis Regina. Numa fase em que buscava reorientar sua carreira, Elis escolheu Milton para principal fornecedor de canções, agora com uma admiração nunca vista, nem mesmo quando da gravação de 'Canção do Sal'. Em seu LP de 72, a 'baixinha' gravou 'Nada Será Como Antes', de Milton e Ronaldo Bastos, incluída no 'Clube'. A gravação da cantora teve êxito junto ao seu público, e causou surpresa em boa parte da crítica especializada. Então, as coisas para Bituca começaram a fluir positivamente. 'Clube da Esquina' veio abrilhantar ainda mais um momento riquíssimo para a MPB, que assistia ao retorno de Gil e Caetano ao país com dois discos maravilhosos, 'Expresso 2222' do primeiro, e 'Transa', do segundo. Gal não havia ficado pra trás, com o magnífico 'A Todo Vapor', e Chico Buarque já havia lançado um ano antes o seu clássico 'Construção'. Apesar de toda a censura imposta pela ditadura militar, a MPB resistia com discos fundamentais para a sua perpetuação.

Se o álbum 'Clube da Esquina' utilizava instrumentos eletrificados em sua quase totalidade, bem como 90% da produção fonográfica brasileira, isso tinha uma razão óbvia: a plena incorporação da textura sonora do rock dentro da MPB. O 'Clube' foi uma das principais obras artísticas da época a definir com requinte e brilhantismo esta tendência modernizadora e mundializada, uma obra-prima que extrapolou as fronteiras ditadas por puristas e retrógrados em geral, que ainda viam na eletricidade das guitarras uma ameaça à 'tradição' de nossa canção popular. Vou além: fixou em definitivo a proposta dos tropicalistas, unindo o rural, o urbano, a tradição e a modernidade em dois LPs antológicos, peças fundamentais na coleção de quem quer que se julgue um admirador de música popular. Salve Minas Gerais!"




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