Em abril de 1980 o Jornal do Disco, que veio encartado na revista SomTrês nº 16, trazia uma matéria com a banda inglesa The Police, que ainda não era tão conhecida no Brasil. Na matéria a banda é associada à New Wave, o movimento musical em evidência até então no mundo do rock. Numa chamada da matéria é anunciada como "Police - Tem reggae no terreiro da new wave". Segue abaixo a matéria:
"É aquela velha e cansada história: os americanos ainda são suscetíveis a convulsões de pavor e espanto quando confrontados com música negra, seja ela blues, r&b, soul ou funk, se, no caso, é feita por negros. A classe média não quer, o mercado praticamente proíbe. O que acontece, então, para que a música negra se entranhe em todas as rádios, todos os discos, já que os obstáculos são tão grandes? Simples. Basta que um grupo branco - quase sempre inglês - adote o dialeto negro, em sua música, transforme-o em linguagem nova e passe a transmitir o ricochete negro a todo vapor. Como o Police fez.
Com uma diferença. Enquanto os Stones - para citar o exemplo máximo de chupada de música negra - infestaram seus primeiros discos de cópias diretas do blues crioulo, fazendo covers carbono de clássicos como 'Little Red Rooster' e 'Walkin' The Dog', o Police partiu de outro princípio, tingindo seu rock bretão de reggae local, farto nas comunidades jamaicanas emigradas das lonjuras do Commonwealth. Assim, não copiou, simplesmente, mas incorporou um tipo de música que estava explícito nas ruas dos guetos londrinos, no P.A. que divertia as multidões antes dos concertos punk. Simbioses como essa são comuns no rock inglês que hoje, por erro ou falta de imaginação, é chamado de New Wave. Joe Jackson, Nick Lowe, Elvis Costello e Graham Parker, para citar uns poucos, são alguns dos que beberam na fonte da eterna negritude. Só que nenhum obteve o apelo de massa e a aura carismática com que o Police foi consagrado.
Em apenas um ano, o Police chegou aos primeiros postos das paradas inglesas de compactos e LPs por quatro vezes. No primeiro espaço de tempo, foi escolhido o melhor grupo novo do ano pelos críticos da Rolling Stone. Um curto caminho longo de um power trio dos anos 80 que tinha tudo para dar errado. Originariamente, o Police foi formado em 1977 por Stewart Copelland, baterista americano que passara grande parte de sua vida no Líbano, filho de um agente da CIA. Recém-saído do progressivo Curved Air - e de uma infinidade de outros, como o Soft Machine e as bandas de Kevin Coyne e Kevin Ayers - Stewart chamou o baixista Sting (neé Gordon Summer), ex-músico de jazz dos cabarés e puteiros londrinos, ex-professor de futebol, Educação Física e Inglês num convento (!) e o guitarrista Henri Pandovani - de formação punk e restrito a três (excelentes) acordes - para completar o trio. Quando ficaram evidentes as limitações de Pandovani, um segundo guitarrista, o inglês Andy Summers foi adicionado e, eventualmente, Henri foi despedido.
Logo em seguida, o Police começou a correr o risco. Lançou um compacto independente, 'Roxane', e tingiu os cabelos de louro para um comercial de chicletes. O disco vendeu bem, o bastante para chamar a atenção da A&M, que contratou o trio imediatamente. O comercial quase desintegrou sua imagem. Aos poucos a Inglaterra contraiu a febre do Police: John Pidgeon, da Melody Maker, disse que 'ao vivo o Police é tão bom que chega a ser criminoso'; discos de ouro: Top Of the Pops. Com a credibilidade restaurada na Grã-Bretanha, o Police transformou-se em 'the next big Thing'. Faltava a América.
Com o lançamento do segundo álbum, Reggatta de Blanc, John Rockwell, do The New York Times, apressou-se a comparar o Police ao Who nos anos 60. 'Nos últimos tempos', disse ele, 'nenhuma outra banda de rock foi capaz de combinar intelegivelmente, progressividade e excitação visceral'. Estava tudo lá, na exuberância do baixo e da voz de frangote de Sting, nos títulos abstratos que não significam absolutamente nada ('se tanto', contou Sting a um jornalista americano, 'nossos títulos são em francês ruim, cambeta'), na bateria convulsiva de Copeland, na guitarra econômica e exata de Summers. Mas só isso?
Não. A fórmula exata foi resumida por Sting em três palavras, brilhantemente: autoconfiança, arrogância e orgulho. Uma mistura mágica, precisa, remanescente da petulância legítima dos roqueiros de primeira hora, do tempo em que rock não era fabricação em série. E, de novo, está tudo lá, no olhar petrificado e cool de Sting - imortalizado em Ace Face, o bellboy vivido por ele no filme Quadrophenia - nas súbitas explosões rítmicas, na síncope cadente do reggae branco, como se tudo começasse de novo, enxuto, mais uma vez.
Mais benéfico ainda é a atual ressurgência de rock nos Estados Unidos, o mercadão ultracobiçado por todos, numa deliciosa reação ao lenga-lenga bem-comportado e polidinho de Linda Ronstadt, Eagles, Styx, Boston e Chicago; um crescendo de pauleira que abençoa grupos como Blondie e o Police, que atingem uma espécie de público polivalente, que agora, no auge da adolescência, descobre algo para além de Fleetwood Mac, Steve Miller e os Bee Gees, algo mais carnudo, mais real.
E no instante em que o Police adapta a mais energética das formas musicais - a sempre vibrante música negra - e cria um código próprio, pessoal e facilmente identificável, no momento em que revive a mais célebre entidade do rock - a porrada - aí sim; o couro come e ninguém vê.
Não, senhores críticos americanos, o Police não está transformando new wave em algo são e apresentável para o público americano (nem inglês, nem chinês), porque seu rock é tão ou mais subversivo quanto o do Sex Pistols (que Belzebu o tenha) ou de Neil Young, porque sua arrogância, seu orgulho e sua autoconfiança não são forjadas, como Knack; porque, no mínimo, o Police está minando as bases de uma estrutura que hoje é flácida e pachorrenta como um mamute, injetando sangue novo num vampiro ressecado, desafiando o dinossauro a se mover. Talvez daqui a algum tempo, o dinossauro caia de podre. Mas até lá, o Police vai fazer tudo pra ele mexer. Que ele mexe, ah disso eu tenho certeza."
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