Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Nara Canta a Palavra Nova - JB (1981)


 Em 1981 Nara Leão lançava mais um disco, Romance Popular. Na ocasião o Jornal do Brasil em sua edição de 15 de junho daquele ano trazia uma matéria sobre o lançamento e a carreira de Nara, em matéria assinada por Tárik de Souza:

"Entra moda, sai moda, persiste o carisma de Nara Leão. Qual é o segredo dessa permanência num mercado tão instável quanto antropofágico? Decerto não é a voz pequena, aos poucos melhor acondicionada, mas ainda assim insuficiente e um tanto linear. Perguntar pelo efeito magnético dos célebres joelhos seria vulgar e inexato - suspensa a voga da minissaia, eles andaram escondidos por longo tempo. E a própria cantora, afinal, casada, foi cuidar dos filhos e mais tarde resolveu voltar a estudar, desaparecida dos palcos.

Para outras cantoras - até mais bem-dotadas - poderia ser o suicídio artístico. Nara, porém, conseguiu manter-se na invejável posição de artista de catálogo, procurada por uma plateia não muito numerosa, mas sempre fiel, caso semelhante ao de raros outros artistas de pouca publicidade e consumo cativo, como o sambista Roberto Silva. Recentemente, Nara Leão ainda se deu ao luxo de gravar um LP inteiro com o repertório de Roberto e Erasmo Carlos ('para exorcizar o lugar-comum sentimental') e outro com Chico Buarque - trabalhos que considera tão dignos quanto o desafio dos repertórios e autores inéditos.

Mas Nara trem um segredo. Seu nome deve ser colocado ao lado das pioneiras cantoras/autoras da MPB, bem antes da geração Malu-Mulher do final de 70. A tardia estreia oficial de sua assinatura neste Romance Popular, em parceria com Fagner e Fausto Nilo (Cli-Cle-Clô, brincando com os nomes da trinca de irmãos compositores piauienses, Climério, Clésio e Clodo) não passa de mero detalhe. Na verdade, Nara Leão é uma das raras cantoras pensantes do país. Pensante, sobretudo, pela própria cabeça e intuição musical forjada em aulas de violão com o mestre Patrício Teixeira. Cada novo disco de Nara significa um compromisso com o repertório quase tão profundo quanto a própria ligação autoral. De Romance Popular, por exemplo, foi defenestrado um letrista que afirmava a versos tantos, 'O amor é...' 'Ora, se eu tivesse tanta certeza, não estaria cantando', observa Nara, uma pessoa que serve-se de constantes doses equilibradas de cético pragmatismo.
Adolescente ainda, frequentava o meio da bossa-nova fervilhante. No famoso apartamento da Avenida Atlântica, onde  morava, nasceram muitas dissonâncias, mas  quando a musa do movimento pôs-se a cantar, na gravadora Elenco do ex-Bando da Lua e praticante bossa-novista Aloysio de Oliveira (Dindi, Inútil Paisagem, Demais), saiu um inesperado repertório de sambas tradicionais. Nara espantou a Zona Sul não versada nos botecos, gafieiras e morros, ao colocar em circulação os desconhecidos talentos de Nelson Cavaquinho (Luz Negra), Cartola, Elton Medeiros (O Sol Nascerá), Zé Kéti (Diz que Fui por Aí) e muitos outros. Estrela do Opinião, projetou para esse mesmo público o maranhense João do Vale (Carcará), assim como em discos seguintes revelaria Paulinho da Viola (Recado), Sidney Miller (Pede Passagem) e Chico Buarque (Olê Olá). Rara autora das próprias contracapas, Nara expunha na do LP Opinião: 'A canção popular pode dar às pessoas algo mais que a distração e o deleite'. A esse respeito, acrescentaria o poeta Ferreira Gullar no disco seguinte: 'Nara é também uma intérprete não a maneira própria de cantar, mas uma posição interpretativa, indagativa e seletiva em face da nossa música popular'.

Quando tudo fazia crer na aparição de uma sólida Joan Baez cabocla, Nara viraria mais uma vez a mesa. No histórico disco Tropicália, de 68, Caetano Veloso portava a moldura de sua foto como integrante do dissidente cisma de guitarras Vicente Celestino e longos cabelos, ao lado de Gil, Rogério Duprat, Gal, Mutantes (Rita Lee incluída), Tom Zé e Capinan. Cabia à cantora a estranha Lindonéia, parceria de Gil e Caetano. Com mais essa virada Nara deixava na poeira as turmas da bossa-nova e da canção de protesto, esta, inimiga das guitarras do tropicalismo. Mas, tampouco seria tropicalista de última hora. Dois anos depois, no fechado ano de 1970, de Paris, encapotada na capa, em plena nevasca, ela mandava um álbum duplo, Dez Anos Depois: vinte e quatro faixas da mais ortodoxa bossa-nova (dezenove assinadas por Tom Jobim); da que ela se recusa a cantar no momento óbvio. 'Esse disco foi uma espécie de pazes comigo mesma', voltaria a contracapista já em outro lançamento. Meu Primeiro Amor (75), vinha repleto de canções de infância (Atirei o Pau no Gato, Upa! Upa! Meu Trolinho, Prenda Minha, Andorinha Preta). Seu título procedia da abominável guarânia Lejania, em versão de José Fortuna e Pinheirinho Júnior. Abominável é claro, para a ortodoxia da bossa, que também, não aprovaria o casamento da voz da cantora com a do Jovem Guardião Erasmo Carlos, na faixa mais tocada do LP seguinte, Meus Amigos São um Barato. Outros ecléticos convivas desta festa de arromba: Dominguinhos, João Donato, Caetano, Gil, Jobim; em pleno 1977, início da distensão política.

Nara e Dominguinhos
Agora, em Romance Popular, uma análise apressada poderia colocar Nara Leão, pela primeira vez, a reboque dos acontecimentos. Afinal, o contingente nordestino que domina o disco (Fagner, Fausto Nilo, Moraes Moreira, Robertinho do Recife, Geraldo Azevedo) já está mais que descoberto e consolidado. Nem se poderia chamá-los de regionalistas ou, na maioria, sequer de inovadores musicais contumazes. Na verdade, Romance Popular subverte mais pelo lado poético, traz a palavra nova, atomizada, fora dos discursos, mas pós-concretista. Um relance de imagens que às vezes remete para o nonsense aparente de Luiz Melodia. Menos afirmações que dúvidas:

O céu coro nordestino/onde eu e Buñuel/ procuro o fogo de Prometeu (Seja o meu Céu)

Mais contrastes que sintonias:

Laranja da Terra/Coca-Cola da China (Laranja da China)

Menos desespero que ironia:

Vai que toca fogo na cadeia/ e solta o passarinho pra cantar/ no peito da pomba e lua cheia/ no coração da bomba o que será? (Romance Popular)"
 




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