Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Gilberto Gil - Revista Rock, a História e a Glória (1975)


 Em 1975 Gilberto Gil deu um depoimento à revista Rock, a História e a Glória, numa seção chamada Rock e Eu, em que o entrevistado falava sobre a presença do rock em sua vida. Gil falou à revista em sua edição nº 11 em matéria assinada por Ana Maria Bahiana:

"Gilberto Gil encontrou o rock quando foi pro sertão nordestino. É verdade. Caetano Veloso conta, e ele mesmo confirma. Depois de andar pelos caminhos conhecidos da música brasileira, depois de ver o nordeste do litoral e dos folhetos de turismo, ele foi pro agreste. E cansado, a procura de fonte nova para alimentar suas inquietações. Encontrou a Banda de Pífanos de Caruaru. E encontrou o rock. A mesma violência, a mesma faca afiada da paixão cortando a geleia geral brasileira. Gil conta:

'Foi uma descoberta simultânea. De um lado, tudo o que havia de oculto na própria música beasileira, na música mesmo do nordeste. De outro, os Beatles, a coisa universal, nova, forte dos Beatles. Já existe rock no meu trabalho naquele disco do fardão, existe rock no disco da Bahia, o que tem o poema de Rogério Duarte na  capa. Eu cheguei a Londres já por dentro do rock. Daí que eu curti Londres de fora, observando, naquela fase o rock já estava muito elaborado, uma coisa orquestral, wagneriana.

Estava numa fase em que o grupo, o combo, já era uma unidade ativa, já preocupada com orquestrações, arranjos. Eu curtia, mas de fora. Eu ia muito ver as coisas do Traffic, por exemplo, eu gostava. Mas via sempre com uma distância. Era uma coisa branca demais pra mim'.

E quem, o que é rock pra Gilberto Gil? 'Eu não posso ser considerado um rocker. Eu não faço rock. Raulzito Seixas sim, faz rock, é um rocker. Mas existe muita coisa rock em mim, influências minhas da tradução da linguagem para o meu universo. É principalmente Beatles e Dylan. Beatles é uma coisa muito ampla, é toda a novidade: as experiências que Lennon gostava de fazer com palavras e timbres elétricos das mesas de gravação, os diferentes sons, os ecos, aquelas coisas todas. A utilização paralela de sinfônicas, aquele universo musical misturado, variado. E a composição, que era de uma novidade incrível.

Hendrix também. Hendrix era o ser, a alma, aquela dimensão que canta, toma, interpreta daquele jeito. A composição, também extraordinária em Hendrix. O disco Axis Bold As Love tem pra mim o mesmo valor, o mesmo significado que o Sgt Peppers.

Dylan era o arrojo poético, a loucura descritiva, o poder da palavra. E muito mesmo o negócio da aparência dele, primeiro ao nível da música popular mesmo, dos cantores country, rurais, americanos, e a parecença dele e disso com o canto rural brasileiro (Atenção - nota minha - aí estão algumas chaves para abrir a Refazenda). Com o cantador, por exemplo. Nos primeiros discos dele, só com o violão e a gaita, me impressionava a igualdade da fonte, a dele e as nordestinas que eu estava descobrindo. E é mesmo incrivelmente parecido. Aquela cantoria, aquelas palavras mastigadas, o mesmo sotaque, aquela coisa ali forte, aquela exuberância. Aquilo me impressionava imensamente. E eu acho que é por onde o Dylan emociona todo mundo. Claro que tem a coisa toda do pensamento político de Dylan, que evidentemente nos círculos mais intelectualizados era onde ele chegava, na crítica europeia, francesa, inglesa e mesmo novaiorquina. Tinha aquela coisa do Herói do Village. Mas eu gostava mesmo era do timbre, a voz e o modo de cantar. Eu via Dylan por  aí.

'Essas figuras são mais fortes pra mim, no rock. Depois, principalmente depois de Londres, eu passei a uma apreciação dos talentos vários que iam surgindo por aí. Como o Traffic, músicos incríveis. E Miles Davis, muito'.

Parece bem claro porque, mesmo na hora em que Gil está refazendo tudo, o rock fica lá, presente, raiz e semente. Porque sempre esteve, esteve lá mesmo antes de Gil ir ao seu encontro. E porque Gil, alquimista poderoso, aprendiz confesso e esforçado de Jorge Ben, compreende até o fim que seja rock, nessas terras ao sul do Equador. Sua lucidez chega a ser cruel:

'Rock brasileiro é Jorge Ben. Ele sempre fez isso, só faz isso. Ele é antriopofágico, tem todos os elementos da transmutação total. É ecológico. Respeita a ecologia cultural. Tem o elemento estrangeiro, mas tem a transmutação local. Porque rock é blues é samba é... toda uma energia que vai acabar na Mother Earth, na Mother África. Eu sou rock nessa medida, na medida que faço isso. Porque rock é mais um feeling. Eu acho muito perigosa essa universalização apriorística  do rock que tem muito por aí. Essa imposição meio totalitária da palavra rock com uma abrangência que não pode ser tão fácil assim. Isso resulta numa defasagem. Essas gerações que vão chegar agora, vão ouvir falar que tudo é rock, e não vão saber porque, o que é rock naquilo. Vão achar que rock, naquilo, é o wagneriano, o superficial, a aparelhagem.. A gente nota isso hoje., já, no Brasil. Às vezes a gente tá tocando num lugar, fazendo um tremendo rock com o Expresso 2222 ou com Jurubeba e a moçada não está sacando, não está compreendendo bem. Mas se você vem com uma clicheria elétrica, uma percussão marcial, aí parece rock. E com o tempo a essência fica perdida.

Torno a dizer que o rock brasileiro é Jorge Ben, é a transmutação. Mas o que foge a isso, que é única e exclusivamente mímica, é um mimetismo puro e simples. Eu acho legal. Mas também não dou essa importância que o pessoal fica dando. Teve as jam-sessions que possibilitaram a assimilação de elementos de jazz pelo que viria a ser a bossa nova. Hoje tem as TV-sessions, verdadeiros audiovisuais, onde o garoto aprende tudinho, os gestos, deixar cair o cabelo de um certo jeito, bater com o pé no chão. Ele sai fazendo depois como viu o Emerson, Lake & Palmer fazer na TV.

Eu não estou achando que isso é bom ou ruim. É o modo que está aí. A volta está sendo dada por aí. É que eu falo como quem já quer ver a volta dada, o outro lado do negócio."





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