Palavras Domesticadas

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domingo, 14 de fevereiro de 2021

Teatro Lira Paulistana - Os Porões da Vanguarda Paulista


 O Teatro Lira Paulistana foi um importante espaço para manifestações musicais de vanguarda que aconteceram em São Paulo, nos anos 80. O movimento conhecido como Vanguarda Paulista, que teve entre seus principais nomes Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, entre outros, tinham no Lira Paulistana um importante espaço para realizar suas apresentações, assim como o Sesc Pompeia. Foi uma época de grande efervescência cultural, em que o movimento do rock nacional dos anos 80 crescia e ganhava fôlego, com  o surgimento de inúmeras bandas por todo país, e em São Paulo, particularmente, um leque de novidades musicais se abria. Numa revista especial de título "Guia Rock Nacional Anos 80", um capítulo é dedicado a esses espaços culturais, dentre eles, o Lira Paulistana:

"Se o Rio de Janeiro teve o Circo Voador como polo de irradiação de novas manifestações culturais, fosse na música, na dança ou nas artes cênicas, São Paulo também teve seus templos. Eram locais onde a juventude se reunia para ver, ouvir e discutir as novidades, resistindo à ditadura militar e germinando novas ideias e conceitos. Um desses templos foi o Teatro Lira Paulistana, na rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, bairro da zona oeste da cidade.

O Lira Paulistana, nome inspirado no livro do modernista Mário de Andrade, surgiu a partir da ideia de Wilson Souto, um dos fundadores e músico da noite paulistana, de criar um espaço aberto para a apresentação de gente nova. Para ajudá-lo na empreitada, ele convida o amigo Waldir Galeano, administrador de empresas. Depois de alguma procura, eles encontram o lugar num anúncio de jornal.

Um pequeno espaço na rua Teodoro Sampaio, 1091, em frente à praça Benedito Calixto, com cerca de 400 metros quadrados e todo destruído. Não fez diferença. O local foi alugado e uma ampla reforma foi iniciada. Seis meses depois, o Lira estava pronto. Pouco antes de terminar a reforma, Souto chama o grupo Tarancón, que fazia uma mistura de ritmos caribenhos e brasileiros, para testar o espaço. Deu tudo certo, o Lira estava aprovado. Pouco antes da abertura, Chico Pardal, o iluminador do teatro, e seu amigo Plínio Chaves, um engenheiro que gostava de artes, passam a fazer parte da equipe.

A abertura oficial do Lira Paulistana aconteceu em 25 de outubro de 1979, com o musical É Fogo, Paulista, escrita por José Rubens Chachá e Sérvulo Augusto, e dirigido por Mario Masseti. A peça contava a história dos bares de São Paulo e seus frequentadores: operários, artistas, intelectuais, bêbados, jogadores. É Fogo, Paulista ficou em cartaz até o início de do ano seguinte, 1980, lotando sempre os parcos 200 lugares do Lira. Mas foi o suficiente para despertar a atenção de outros artistas.

Cerca de um ano depois de ser inaugurado como novo espaço cultural da  cidade, o Lira Paulistana passou a ampliar suas atividades. A história começou por causa de Itamar Assumpção, um sujeito do interior de São Paulo (Tietê), que tinha morar em Londrina (PR) mas voltou para São Paulo com a intenção de mostrar sua música.

O encontro entre Wilson Souto, Chico Pardal e Plínio Chaves se deu no Festival da Feira da Vila Madalena, bairro da zona oeste de São Paulo, vizinho de Pinheiros. Itamar já havia vencido um festival de música em Campinas, com a canção Luzia e concorria no Festival da Vila Madalena com outra composição: Nego Dito. Ao ouvirem a música de Itamar, que trazia em seus arranjos pitadas de rock, samba, reggae e funk, resolvem produzir seus disco.

Itamar Assumpção

Juntam dinheiro entre eles, criam o selo Lira Paulistana e lançam Beleléu, Leléu e Eu (1980), o primeiro da carreira de Itamar Assumpção, com a banda Isca de Polícia. Pouco tempo depois, enxergando a necessidade de divulgar não só suas composições, mas as demais atividades culturais que aconteciam na cidade, e não eram exploradas pela grande imprensa, os sócios do Lira resolvem criar seu próprio jornal. Chamam para tocar o projeto o jornalista Fernando Alexandre e o comunicador visual Riba de Castro, que passam a ser sócios no empreendimento. Nascia assim o Jornal do Lira Paulistana, um semanário pioneiro em apresentar uma completa agenda cultural na cidade, tão comum nos jornais e revistas de hoje. O Lira Paulistana passou a ser Centro de Artes, Gravadora e Editora Lira Paulistana.

O Lira Paulistana passou a ser ponto de encontro de artistas em São Paulo. Em seu ecletismo, recebia músicos, artistas plásticos, escritores, atores, cineastas, jornalistas, estudantes. Essa reunião de vertentes acabou resultando num movimento conhecido como Vanguarda Paulista.

O pessoal da Vanguarda se diferenciava dos demais grupos daquela época. Primeiro, porque a música quer faziam não era essencialmente o pop  rock que estava sendo praticado pelas bandas bancadas pelas grandes gravadoras. Havia gente fazendo uma música mais cerebral, cheia de atonalidades, de uso de recursos eletrônicos e de teatralização, como Arrigo Barnabé.

Tinha o Premeditando o Breque, grupo de amigos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP com sua mistura de samba de breque e rock. Tinha o Língua de Trapo, outra reunião de estudantes, só que estes da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, com suas sátiras debochadas e escrachadas que não poupavam ninguém, desde figuras públicas, como Fernando Gabeira, até os temíveis punks, homenageados no disco Como É Bom Ser Punk (1985).

Arrigo Barnabé

Tinha também o Grupo Rumo, também originário do encontro de estudantes da ECA-USP, liderados por Luís Tatit e cuja grande marca era privilegiar a fala, os vocais, que revelariam a cantora Ná Ozzetti.

A segunda razão diferencial é porque todo o trabalho dessa galera era independente. Talvez a pecha de 'Vanguarda' dada pela imprensa paulista tenha assustado as gravadoras que, com raras exceções (Língua de Trapo e Premeditando o Breque gravaram por RGE e EMI, respectivamente), nunca deram bola para esse pessoal que, no entanto, marcou na história da música dos anos 80 e do Lira Paulistana.

Espaço democrático e de diversidade, o Lira Paulistana também contribuiu com o rock brasileiro dos anos 80. O marco dessa contribuição aconteceu em 1982, com a realização de um projeto que daria chances a novos artistas de se apresentarem no palco do teatro. Era o Boca no Trombone, iniciativa do Lira Paulistana com o patrocínio do Conselho Nacional de Direitos do Autor, então dirigido pelo maestro Amylson Godoy.

Para participar do Boca no Trombone era necessário não ter gravado nenhum disco e apresentar obras inéditas. as inscrições foram abertas em outubro e mais de 300 foram recebidas. A seleção dos artistas seria feita por um júri que contava com os críticos musicais João Marcos Coelho e Maurício Kubrusly, com o compositor Eduardo Gudin (célebre por sua canção Ronda)*, Luís Tatit, do Grupo Rumo, e por Wilson Souto, um dos sócios do Lira Paulistana.

Quase dois meses depois foram selecionados 28 inscritos, entre eles duas bandas de São Paulo que estavam tentando a sorte. Titãs do Iê Iê (os futuros Titãs) e Ultraje a Rigor. Os classificados tiveram direito de se apresentar no palco do Lira Paulistana. Os shows ocuparam por cerca de três meses a agenda da casa, que estava sempre lotada. Depois dos shows no Lira, Ultraje a Rigor e Titãs passaram do underground para o mainstream, assinando contratos com a WEA."

* Há uma incorreção nessa informação. Ronda é de Paulo Vanzolini


 


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