Em sua edição nº 4 (1980), a revista Música trazia uma boa matéria sobre o cearense Ednardo. Um dos representantes da invasão nordestina que aconteceu na música brasileira nos anos 80, Ednardo lançou naquele período alguns dos discos mais marcantes daquela vertente que fez história. A matéria traça uma trajetória de sua carreira e sua contribuição para a geração de músicos e compositores que ganharam força e representatividade a partir dos anos 70:
" 'Desde 1973 lancei seis discos e mudei três vezes de gravadora. Saí p... da vida da Continental, RCA e WEA. As gravadoras estão aqui mais para difundir coisas de fora do que para nos dar condições de realizar um verdadeiro trabalho. Nenhuma delas aceitou minha colocação estética, como pessoa, nem admitiu a crítica, implícita em toda a minha obra, ao sistema que elas representam.'
Ednardo fala em ilusões de sua carreira e de sua convivência com a máquina, o sistema. Sabe que a relativa notoriedade do Pessoal do Ceará se deu 'porque queriam nordestinos para saciar a curiosidade folclórica do Sul-Maravilha'. Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem (1973) acabou servindo apenas para introduzir os compositores e intérpretes Ednardo, Rodger e Teti, mais os compositores Belchior e Fagner. Talvez porque não aceitaram 'embarcar nas canoas furadas de algum movimento ou posicionamento postiço', foram obrigados a recomeçar quase do nada, batalhando suas carreiras-solo.
Em 1974, Ednardo apresentou uma brilhante descrição poética de sua saída da terra natal e viagem rumo à cidade grande, uma história contada através de doze músicas, à maneira da literatura de cordel: O Romance do Pavão Misteriozo. Mas a moda dos cearenses passara e o caráter inovador e criativo da obra só foi reconhecido por alguns críticos de jornais e revistas. Em termos de grande público, o disco passou completamente despercebido. No entanto, bastou aproveitarem sua faixa final na novela 'Saramandaia' para se transformar num sucesso do dia para a noite.
O caminho para a lucrativa coopção estava aberto. Se incidentalmente produzira tal sucesso, o que Ednardo não poderia alcançar se trabalhasse com o propósito assumido de criar temas para telenovelas e músicas que dão ibope? Mas ele e o Pessoal do Ceará já haviam se lançado com uma postura definida quanto às 'Palmas Pra Dar Ibope' (faixa do LP de 1973). Ednardo recusou com lucidez esse sucesso fácil: 'Eu não quero costurar minha própria camisa-de-força. Os meios que fazem o sistema artístico musical criam apelos e necessidades cada vez mais fortes, direcionando a arte, e alguns criadores passam então a se repetir ou desenvolver esquemas que possam então se repetir ou desenvolver esquemas que possam anular ou englobar aos outros. Não quero seguir aquela máxima do futebol, que estranhamente algumas pessoas adotaram para a arte, em time que está ganhando, não se mexe'.
A voga do 'Pavão Misteriozo' acabou passando meteoricamente, sem consolidar qualquer público novo para o trabalho de Ednardo. E inclusive ofuscou seu LP de 1976, Berro. Uma lição muito útil sobre em que sentido a indústria cultural trabalha.
Em 1977, Ednardo realizou sua obra-prima: O Azul e o Encarnado, onde a preocupação básica era 'abordar uma discussão dialética da vida, com músicas se negando uma à outra para estabelecer uma verdade maior'; mas, acima de tudo, se colocava o dilema de toda uma geração, que sonhara com a perfeição social, e vira desfeitas as esperanças de transformações imediatas, tendo então que optar por uma lucrativa adesão ao status quo ou manter-se firme em seus ideais. a escolha do poeta é inequívoca: embora seja difícil não ter mais 18 anos e conservar a semente da inocência, é preciso, sempre, renascer das cinzas.Coincidência ou não, este LP, o mais incisivo da carreira de Ednardo, precipita mais uma troca de gravadora: 'Quando eu estava realizando O Azul e o Encarnado na RCA, propus que dele constasse um encarte-brinquedo, tipo desses joguinhos onde a criançada percorre tantas casas a partir dos pontos tirados de dados; só que a trajetória era percorrida dentro do corpo humano e ampliava ou esclarecia vários toques do disco. Depois de muitas discussões, o pessoal da RCA disse que, se eu queria tanto, mandasse fazer com meu próprio dinheiro. Veja só, acabei mesmo eu, um pobre compositor brasileiro, dando dez mil encartes de presente para essa multinacional, a fim de manter a integridade da obra. Aí, vinte dias depois do lançamento do LP, eu rompi com a RCA. E sabe o que eles fizeram? Tiraram o disco de circulação, por simples pirraça'.
Cauim, o disco seguinte, fazia parte de um projeto que envolvia também cinema, 'um média-metragem, documentário e ficção sobre trilogia étnica que constitui a raça brasileira - o índio, o negro e o europeu -, cujo sincretismo pode ser observado no maracatu, daí termos utilizado esse ritmo para simbolizar a transmutação, a reciclagem constante que é o homem brasileiro'.
Finalmente Ednardo (1979) se constitui numa panorâmica nacional na última década, inclusive tratando de temas como a guerrilha do Araguaia, que dificilmente seriam tolerados antes da chamada abertura (mesmo agora, o disco andou alguns meses retido na Censura). 'Fiz questão de gravar agora esses versos feitos há tantos anos para expressar um descontentamento que não era individual, era geral, mas a gente tinha que ocultar'.
Embora seu relacionamento com a CBS não reedite os problemas encontrados nas outras gravadoras, Enardo não fez as pazes com o 'poder musical e todos que estão nele há tanto tempo., quanto a situação que fingiram combater em pseudo-guerras e arreglos'. E compara sua situação à do operário nordestino, 'que trabalha nas construções das grandes cidades. Durante o dia sangra, transpira de suor e de medo de despencar lá de cima, suporta a solidão. À noite, exausto, dorme dentro do projeto ainda por acabar, alimentando o firme propósito de habitá-lo, embora muitas vozes, após utilizarem sua força de trabalho, agora queiram expulsá-lo. Na arte, eu sei que esse espaço acompanha quem o tem verdadeiramente, e é nisso que eu acredito, e é por isso que eu brigo e canto'."
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