Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Jards Macalé Lança "O Q Faço É Música" (Revista Bizz - 1998)


 Em 1998 Jards Macalé lançava mais um disco, "Jards Macalé - O Q Faço É Música", em que ele faz releituras  de antigas gravações suas, faz versões próprias e pessoais de músicas gravadas por outros intérpretes, além de apresentar músicas com letras inéditas deixadas por seu parceiro das antigas, Torquato Neto. A revista Bizz de setembro de 1998 trazia uma matéria, assinada por Danilo Monteiro, com o compositor carioca:

"Trinta anos depois de composta, a canção 'Vapor Barato', de Jards Macalé e Waly Salomão, está cada vez mais viva. Recuperada pelo filme Terra Estrangeira em 1995, depois revisitada pelo grupo O Rappa, e pela própria Gal Costa (sua intérprete original), em dueto com Zeca Baleiro, no Acústico MTV, ela ganha agora mais duas regravações. Uma, seguindo tendência inglesa moderna, o trip hop, foi feita por um grupo carioca iniciante, Vulgue Tolstoi (com clipe indicado entre os melhores demos do VMB da MTV). A outra, mais importante, é do próprio Macalé e faz parte do álbum Jards Macalé - O Q Faço É Música, que rompe um silêncio fonográfico de seis anos do compositor, cantor e violonista. Além de canções inéditas com letras de Torquato Neto e do cineasta Glauber Rocha, o disco também traz novas interpretações de algumas pérolas do seu pouco conhecido repertório, como 'Movimento dos Barcos' e 'Poema da Rosa'.

Macalé é um criador constante que registra bissextamente sua obra. Sua música não é  considerada das mais 'comerciais'. Para Arnaldo Antunes, que acha Aprender a Nadar (o segundo disco de Jards, de 1974) 'antológico', 'a integração do violão com o canto que ele tem é muito original'. Seria original demais? Outra fonte de dificuldade pode ser a fama de 'maldito', expressão usada para definir os artistas alternativos na década de 70. Macalé confessa que usou conscientemente esse rótulo, até perceber que ele tinha adquirido uma conotação pejorativa. 'Na ditadura militar, ser maldito era ser promovido a general. Claro, a gente era da resistência. Depois, acabou virando uma pecha.'
Fazendo poucos shows - 'bem menos do que eu gostaria' - e poucos discos, ele garante: 'Quer me ver contente, me põe pra trabalhar'. Leva uma vida modesta. Mora em apartamento alugado no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e não tem carro. 'Minha única propriedade privada é meu violão', declara. 'Só não aconteceu uma coisa mais grave até hoje porque minha mãe recebe uma pensão da Marinha -  meu pai foi reformado como contra-almirante -, e ela de vez em quando pergunta se eu estou precisando de alguma coisa.'

Lidar com limitações faz parte do trabalho deste carioca de 56 anos. Ele conta que compôs a música-tema para o filme Tenda dos Milagres, dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1977, em uma viagem de carro do Rio para a Bahia. 'As cordas do cavaquinho foram estourando, no fim da viagem só restava uma, mas terminei o choro.'

As regravações de 'Vapor Barato' aumentaram seus ganhos com direitos autorais, mas  nada que lhe permita luxos. 'Quando toca muito, recebo 2 mil reais por trimestre. Mas como a própria letra diz, 'Não preciso de muito dinheiro'.'

A versão de 'Vapor Barato' que toca no filme de Walter Salles Jr. não é exatamente igual à original, gravada por Gal Costa no disco A Todo Vapor, de 1971. 'O Wisnik (José Miguel, autor da trilha sonora) colocou umas cordas, ficou mais bonito', opina Macalé.

Ele sempre trabalhou com música. 'Nunca pensei em desistir, as dificuldades me fortaleceram. 'Mesmo quando contou com o apoio de amigos, esbarrou em dificuldades. Em 1982, o empresário Cláudio Cohen bancou a gravação de uma jam session de Macalé com Naná Vasconcelos, percussionista de renome internacional. A sessão resultou num álbum que hoje é 'cult', Let's Play That, mas que teve de esperar até 1993 para ser lançado.

Macalé e Naná Vasconcelos no estúdio

Seu primeiro emprego foi como copista da Orquestra Tabajara, aos 14 anos, com o qual aprendeu a ler música. 'Escrevia, levava as partituras na rádio Mayrink Veiga, colocava para cada músico, e então sentava para assistir a apresentação e entender o que eu tinha copiado.' Aos 16, frequentava a churrascaria Pirajá, que ficava ao lado de seu apartamento, em Ipanema, e deve ter sido uma boa escola. Lá, sentava com Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Grande Otelo. 'Ficava bisolhando o Baden tocar aquele violão'.

Foi o envolvimento com o grupo tropicalista que lhe deu a primeira projeção. destacou-se como arranjador e diretor musical de Maria Bathânia e Caetano Veloso. Chegou a se mudar para Londres no começo dos anos 70, onde Caetano estava exilado, para trabalhar com ele nos arranjos do disco Transa, outro cult, no qual Macalé toca violão e guitarra. 'A gente vivia na mesma casa, aí as diferenças ficavam bem patentes, mas levamos o trabalho até o final', afirma sem querer se estender sobre o assunto.

Hoje, ele e Caetano não se falam mais.* No entanto, Macalé diz que a divergência foi com o grupo do qual faziam parte Bethânia, Gilberto Gil, Caetano e Gal, não com alguns deles especificamente. 'Fizemos grandes trabalhos, eu colaborei no que podia, e talvez até no que não podia. Eles moraram na minha casa em Ipanema, onde Guilherme Araújo (empresário que lançou o grupo) os conheceu. Foi um problema de caráter, teve um momento em que não atinávamos mais.'

Uma amizade mais peculiar Macalé desenvolveu com João Gilberto. 'Chegamos a ficar doze horas conversando no telefone, aí uma hora ele falou: 'Espera um pouco que eu vou fazer um cafezinho', e voltou depois.' Em sua homenagem, Macalé  compôs 'Um Abraço No Oliveira' (título que se refere a um dos sobrenomes menos conhecidos do pai da bossa nova), registrada agora em seu novo trabalho.

A recente volta de Jards ao estúdio permitiu que se refizessem algumas antigas parcerias. O guitarrista Lanny Gordin, que causou furor no início dos anos 70 por suas  participações em músicas de Caetano e Gal, gravou violões para 'Movimento dos Barcos', refazendo a colaboração que já tinha acontecido na primeira gravação dessa música, no primeiro álbum de Macalé.

O outro reencontro não foi tão 'físico'. Ele musicou dois poemas que Torquato Neto (um deles, o belíssimo 'Destino', prevê: 'o destino do poeta é grande'), um dos principais letristas do Tropicalismo, deixou antes de se suicidar, em 1972. 'Fiquei muito tempo sem mexer nisso, pela dor de perder um amigo', conta, com olhar distante. O momento da retomada pode ser um pouco melancólico, mas a música brasileira  agradece."
 

* Tempos depois, os dois voltaram a se entender




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