Em sua edição de 25/04/2004 o jornal O Globo trazia uma matéria sobre um documentário que estava sendo finalizado sobre o compositor Cartola. Dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, o filme traça a trajetória de um dos mais importantes personagens do samba. A matéria é assinada por Jaime Biaggio:
"Há um filme sobre a vida de Cartola sendo filmado na casa noturna Rio Scenarium, na Lapa. Beth Carvalho está cantando "As Rosas Não Falam' ao violão e a produção pena para conseguir silêncio. O tempo todo, algum funcionário da casa faz o piso de madeira ranger e ameaça estragar um take. E isso sem falar nos carros na rua em frente. Os diretores Lírio Ferreira (co-diretor de 'Baile Perfumado') e Hilton Lacerda (roteirista de 'Amarelo Manga') demoram a conseguir fechar o depoimento/canja da sambista.
Mas dá para entender que seja assim: não há segurança na porta nem gente da produção de walkie-talkie para garantir silêncio. 'Cartola' não é 'Cazuza', não tem Columbia, Globo Filmes, orçamento confortável, atores conhecidos. À exceção do garoto Marcos Paulo, de 11 anos, aliás, nem tem atores: será um documentário sui-generis, em que a realidade a ser buscada será realçada com cenas de filmes, manipulação de áudio e vídeo ou inserts ficcionais. Daí as cenas em que Marcos Paulo faz as vezes do Cartola jovem nunca capturado por uma câmera de cinema (mas não é bem um docudrama; Ferreira arrisca um 'atualidade reconstituída' inventado na hora da entrevista).
- É a montagem que vai amarrar tudo - diz Ferreira, que tem dificuldade em achar definições para o filme, iniciado na quarta-feira. - O filme tem um lado... não tão louco, mas que também não é assim tão mastigado.
- Ao mesmo tempo, não queremos partir para o hermetismo total - acrescenta Lacerda.
Esse papo foi antes da chegada de Beth Carvalho, última personalidade a gravar um depoimento. O término das filmagens foi no dia seguinte, com um ato de 'atualidade reconstituída': a recriação na quadra da Mangueira, de um típico ensaio da escola nos anos 40.
Lacerda e Ferreira não parecem muito dispostos a revelar coisa demais sobre o filme. Mas dizem quais foram os entrevistados que deram depoimentos. É uma lista longa que inclui Jards Macalé, Nelson Motta, Hermínio Bello de Carvalho, Sérgio Cabral, Cacá Diegues, Nelson Sargento e nomes menos reconhecíveis de cara, como Pelão, que produziu o primeiro disco de Cartola (isso não aconteceu há tanto tempo assim, lembre-se que Cartola, nascido em 1908, só foi gravar aos 66 anos).
Sobre as histórias de Cartola que serão contadas, Ferreira e Lacerda são mais econômicos. Mas adiantam que não serão contadas pelos entrevistados, e sim pelo próprio Cartola, em imagens ou falas de arquivo.
- As informações básicas de Cartola virão dos offs de Cartola. E os depoimentos comentarão as informações que ele trouxer.
Beth Carvalho conta histórias pré-selecionadas pela produção, presumivelmente mencionadas pelo próprio Cartola em algumas centenas de gravações de arquivo pesquisadas. Ou fornece mais evidências sobre o jeito de ser do compositor, também a partir de causos como o rompimento dele com Nelson Cavaquinho (Nelson vendeu a uma editora musical a sua parte num samba composto pelos dois em parceria, e Cartola ficou furioso). Ou o orgulho (e proteção) que ele tinha de 'O Mundo É Um Moinho', que Beth queria gravar e Cartola desaconselhou.
- 'Isso não vai dar certo' - disse ele, segundo Beth, a cantora que mais gravou músicas do sambista. - ele falou 'Essa música não é pra você. 'As Rosas Não Falam' você grava, aí vai dar certo, mas esse não'. Um ano depois, eu gravei 'O Mundo É Um Moinho', e estourou também.
As fontes dos registros da imagem e da voz de Cartola que aparecerão no filme são as mais variadas possíveis, do Museu da Imagem e do Som à proverbial fita-cassete-achada-num-canto. Porém, as 'atualidades reconstituídas' darão conta do início da vida de Cartola, já que há pouco material dessa época.
- A imagem mais antiga que temos é do filme 'Orfeu do Carnaval' (1959), de Marcel Camus - diz Lacerda. - De gravações em áudio temos uma de 1940: ele com o maestro Leopold Stokowski.
Há registros de gravações de Cartola desde 1929. A primeira parte de sua carreira termina, segundo os diretores, em 1949, quando ele deixa a esposa, dona Zica.
O sumiço vai até 1956, quando Cartola volta à Mangueira, pelas mãos de Zica e de Carlos Cachaça. Sobre esse período, sabe-se pouco (ele teria ido morar no Caju).
O sumiço de Cartola pode não ter sido exatamente um sumiço, e sim, descaso: ele estaria ao alcance de todos, apenas não teria sido procurado por ninguém.
É tanta história que todas as fontes de informação são bem-vindas. Por exemplo, um dos dois curtas-metragens existentes sobre Cartola, 'A morte de um poeta', composto exclusivamente de imagens de seu enterro, foi rodado por Aloysio Raulino (o outro, 'Chega de demanda', é de Roberto Moura). No Rio Scenarium, lá estava comandando a câmera da gravação com Beth Carvalho.
- Conheço Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, eles me falaram do filme deles, eu cedi as imagens do meu - disse Raulino.
O filme está mudando sempre. Mas há elementos já pensados e fechados, como revela Ferreira:
- Estamos estabelecendo a relação entre Cartola e Machado de Assis. Cartola nasceu no ano em que Machado morreu. O filme começará com a morte de Cartola (1980). Um elemento machadiano."
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