Palavras Domesticadas

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sábado, 20 de fevereiro de 2021

Naná Vasconcelos (Jornal Canja - 1980)


 Naná Vasconcelos, um dos grandes nomes da percussão mundial, viveu boa parte de sua vida em terras estrangeiras, para desenvolver seu trabalho da forma que sempre quis e idealizou, já que no Brasil viveria com uma série de limitações, fato que ocorre com vários músico no país. Mas ele sempre que podia passava longas temporadas no Brasil, ou mesmo pequenas e ligeiras visitas, quando seus compromissos davam uma trégua, ou mesmo quando vinha tocar no país. Assim foi quando Naná foi convidado a tocar num grande festival de jazz em São Paulo, chamado Monterey Jazz Festival, em 1980. O jornal musical Canja fez uma boa matéria com o percussionista pernambucano na ocasião, assinada por Bell Kranz, e intitulada "Coalhada, pamonha, tutu de feijão e mé. Naná quase pira". Abaixo, a matéria:

"Depois do Festival, Naná fez de novo as malas e se mandou para Recife, sua terra. Não quis que fossem buscá-lo no aeroporto. Ia ser um tal de 'ele vai no meu carro', 'não, ele vai no meu', que ele saltou fora. Foi sozinho. Foi, mas quando chegou, até escola de samba tinha à sua espera. Teve festa na família e convite do clube do bairro para dar uma canjinha. Passou dias na casa da mãe, bajulado como nunca, tipo comidinha na boca. Até um gol o irmão dedicou a ele. Num sábado, Naná foi pro campo e não entendeu direito. Era um tal de gritar Coalhada pra cá, Coalhada pra lá, o que era aquilo? Só depois entendeu, quando explicaram a razão do apelido. Mas o gol saiu. O irmão chutou para as redes e saiu correndo em direção a ele. 'Não falei, não falei, mano?'

Saudade matada, Naná veio para São Paulo. E, quinta-feira, dia 4, passou um dia incrível em Tatuí, cidade-música.

- 'Que maravilha, que maravilha', o dia inteiro ele não falava outra coisa.

Foi tratado como príncipe. No almoço, atenderam seu pedido: peixinho frito. De quebra, vejam só, tutu de feijão, arroz soltinho, salada farta, cerveja e, para abrir os trabalhos, o mé de Tatuí, cana pura, outro orgulho da cidade.

- 'Pra quem comeu tanta lata na América, nossa mãe! Isso aqui é demais'.

Fim do almoço, o diretor do conservatório não deixou por menos. Levou Naná para sua casa pra comer pamonha. Naná comeu duas e não saiu antes de bater um papinho rápido (e bem baixinho) com 'as meninas', ou seja, as plantas da casa.

No Conservatório, 60 meninos estavam lá pra assistir sua palestra. O prédio pomposo contrasta com o visual da cidade, cheia de casinhas pequenas e muitas árvores. Naná lembrou das mangueiras de Recife. Apresentou o berimbau a todos, passando de mão em mão. Tocou um chorinho no pandeiro com os alunos e distribuiu autógrafos e ideias. 'Os de cá batem palma nesse ritmo, os de lá nesse daqui, depois batem todos juntos'. Vibração geral. Os olhos brilhavam na plateia e todos deram muita risada com os exercícios. Na hora do berimbau, total silêncio.

Menos de uma hora depois, Naná sai pingando de suor, satisfeito. Alegria geral.

O respeito da plateia, as palmas que recebeu no festival de Monterey o surpreenderam. Mas mesmo assim ele não está de todo seguro:

- 'O receio continua. Eu quero que o berimbau saia do folclore assim como outros instrumentos afro-brasileiros. Despertar o desenvolvimento da percussão no Brasil.'

O que mexeu mesmo com a cabeça de Naná nesse tempo todo em que esteve fora do Brasil foi o trabalho de musicoterapia que fez com crianças francesas.

- 'O cuidado em tratar com as crianças exigiu muito da minha criação. De repente, um deslize podia fundir a cuca delas. As crianças tinham problemas de coordenação, traumas psicológicos que impediam, às vezes, até de falar. Na maioria, filhos de imigrantes que tinha de falar na rua o francês e, em casa, o árabe. O pai vai para a casa comer e engolir televisão. Uma barra. A nossa criança tem rua, a piração dela é outra. De repente ela pode pegar um copinho de iogurte e tirar um ritmo. Tem senso de improvisação imediata. Lá eu era músico e amigo. Colocava música em tudo.'

Acende um cigarro, com a voz mansa e baixa, continua:

- 'O segredo do swing é a simplicidade. É preciso ter uma fórmula e técnica para executar as propostas. Depois disso é que o músico pode incrementar. Eu sabia que aqui não tinha uma coisa definida no geral, mas estou surpreso porque tá melhor do que eu esperava. Agora tá tudo voltando. Zé Ramalho, a produção independente, a vocalização moderna e de fórmula simples do Boca Livre, que lembra o Waldick Soriano, é excelente...'

Por essas e outras ele não gostou nada do piche que George Duke deu na Baby e no Pepeu. e manda até um recadinho pro moço americano:

- 'Olha, meu, tenha calma pra não confundir. Você gravou música brasileira, mas não quer dizer que você manja de música brasileira.'

E o que é música brasileira?

- 'É samba, é bossa nova, é carnaval?, me perguntavam os gringos. A dificuldade de impor a música brasileira lá fora é muito maior do que aqui. Tem música mineira, música nordestina... então pode-se falar que existe o som de Naná. Eu sou muito sozinho no meu trabalho, mas ele não é isolado.'

Para simbolizar a chegada desse seu som ao Brasil, Naná vai fazer o disco Chegada, junto com seu grupo Assum, formado pelo irmão Erasto Vasconcelos e Afbye Djeng, do Senegal. Depois se apresenta com a Orquestra Sinfônica de São Paulo, regida pelo maestro Diogo Pacheco. Antes porém, como diretor do Criative Music School, em Woodstock, Naná dirige nos EUA um curso de férias para músicos de todo o mundo.

Mas para o pessoal de Tatuí, ele não deixou barato. Prometeu voltar em dezembro. Podem ir fritando o peixe, servindo o mé, que ele vem mesmo."
 


 






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