Em sua edição de 24 de outubro de 2004 o jornal O Globo trazia uma matéria com Gal Costa, que falava num livro de memórias que ela estaria escrevendo. Mas a matéria dizia que os textos que ela andava escrevendo não iriam virar livro tão cedo, e talvez nem viriam. Mas o jornal teve acesso a algumas páginas escritas, e publicou em primeira mão, como os textos abaixo:
"Uma vez, quando criança, tive uma premonição muito forte. Morava na Graça (bairro de Salvador) numa casa muito simples. Dedé e Sandra (irmãs que foram casadas, respectivamente, com Caetano Veloso e Gilberto Gil) moravam em frente. Tinha duas janelas e um portão. Estava sentada numa das janelas lendo um gibi, quando passou do outro lado da rua um rapaz, um cantor, que cantava na televisão local da Bahia. Era uma televisão bem irregular com programas ruins, e alguns bons, como o do Carlos Coquejo, por exemplo.
Eu me lembro que a rua toda correu, meus amigos, meus colegas, todos correram para o cara com pedaços de papel na mão pedindo autógrafos. E pensava: 'Que coisa sem sentido. Um pedaço de papel, que importância tem a assinatura de um cara num pedaço de papel? Que coisa ridícula'.
Ao mesmo tempo explodiu uma intuição que me mostrou exatamente na situação dele, dando autógrafos. Foi uma premonição extraordinária. Deveria ter uns 12, 11 anos, talvez menos. Foi um acontecimento muito forte. Mas não comentei com ninguém. Guardei dentro de mim porque achava que as pessoas poderiam achar loucura. Como essa, tive muitas outras antevisões. Tenho até hoje. E até hoje não conto pra ninguém porque receio que, se contar, essa espécie de encantamento poderá se partir e impedir a sua realização."
" Chico (Buarque) não se lembra de nada. Mas foi ele mesmo que me introduziu à diretoria da TV Record. Naqueles dias, Chico e Nara faziam 'Pra Ver a Banda Passar', um dos vários programas de música popular brasileira que a Record exibia semanalmente.
Cheguei ao Rio com a minha mãe em férias, coincidindo com a estreia de Bethânia no lendário show 'Opinião'. Lembro-me que assisti aos prantos. Bethânia era magra e, carregada de emoção, vergava o corpo com uma flexibilidade de vara verde, parecia que ia quebrar. A plateia enlouquecia. Voltei para a Bahia só pensando em vir para o Rio morar. Pedi um dinheiro emprestado a um primo que, quando soube que era para eu vir para o Rio virar cantora, recusou. Outro primo, porém, foi mais justo e lá vim eu com trezentos e poucos não sei o quê. Nossa moeda já mudou tanto que não sei precisar.
Feliz da vida, consegui uma vaga numa kitchenete na Sá Ferreira, onde só podia dormir e tomar banho. O resto do dia era passado em casa de primos, amigos e da turma da MPB.
Chico apresentou-me então o seu empresário Roberto Colossi e, por sua indicação, lá fui eu a São Paulo mais Chico falar com o bambambã da Record, o Marcos Lázaro. uma figura gorda, argentino, fumava um charuto com aquela presença dominadora dos nossas vizinhos do sul. Chico havia me aconselhado a pedir um bom cachê. Mas com aquela presença grandalhona e forte à minha frente, tímida como eu era, aceitei a merrequinha de cachê que me ofereceram. Fiz o programa do Chico com a Nara, depois o 'Fino da Bossa', como Jair Rodrigues e a Elis Regina, e um programa do Agnaldo Rayol... Enfim, conseguia um dinheirinho. Com isso saí da vaga da Sá Ferreira e aluguei um quarto - só pra mim - no Solar da Fossa. O banheiro era fora. Moravam lá: Caetano, Paulinho da Viola, Rogério Duarte... Foi um início difícil mas que me traz recordações, por mais difíceis que possam ter sido. Como o dia em que não tinha nada para comer, dinheiro nenhum, apenas um vale de casco vazio de uma Coca-Cola. Foi o que me salvou: com ele consegui um leite gelado e um bolinho de fubá."
" Naquela época convivia com todo o ambiente tropicalista. Só falávamos dos movimentos novos que surgiam no mundo. Gil ouvia Hendrix o dia inteiro. Janis Joplin não saía da minha cabeça. Aquele som, aquele rasgo de voz foi me tomando de uma forma que criou em mim uma necessidade de fazer alguma coisa diferente do que eu acreditava, de tudo o que já fizera e de como eu entendia a música até então. Eu era muito radical, gostava de pouquíssima coisa. João (Gilberto) era meu ídolo e nada, quase nada passava pela minha peneira. Não gostava de iê-iê-iê, nem da jovem guarda, de nada. Precisava fazer alguma coisa para me expressar, botar pra fora o que eu sentia, com força, atitude, e que, falando francamente, chamasse a atenção sobre mim.
Gil e Caetano envolveram-se de corpo e alma com essas novas experiências da música popular brasileira. E dentre essas pesquisas me deparei com 'Divino Maravilhoso', uma canção que mexeu comigo. Caetano convidou-me para cantá-la. Expliquei que queria cantar de uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira. Queria mostrar uma outra mulher que há em mim. Uma outra Gal além daquela que cantava quietinha num banquinho a bossa nova. Queria cantar explosivamente. Para fora.
Gil fez então o arranjo para o 'Divino Maravilhoso'.
Quando Caetano me viu pisar o palco cheia de penduricalhos no meu pescoço, aquela cabeleira afro armada por Dedé, quase morreu de susto. Ele não sabia de nada. Não tinha escutado o arranjo do Gil, nada, nada. Cantei com toda a fúria e força que havia em mim. Metade da plateia se levantou para vaiar. A outra metade aplaudiu ferozmente. Um homem na minha frente berrava insultos. Foi então que me veio ainda uma força maior que me atirou contra ele. Eu cantava diretamente para ele: 'É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!' Cantava com tanta força e tanta violência que o homenzinho foi se aquietando, encolhendo-se, e sumiu dentro de si mesmo. Foi a primeira vez que senti o que era dominar uma plateia. E uma plateia enfurecida como aquela. Naquele tempo de polarização política, a música era a única forma de expressão. Despertava paixões, verdadeiras guerras. Saí do 'Divino Maravilhoso' fortalecida, crescida. Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa."
Gil e Caetano envolveram-se de corpo e alma com essas novas experiências da música popular brasileira. E dentre essas pesquisas me deparei com 'Divino Maravilhoso', uma canção que mexeu comigo. Caetano convidou-me para cantá-la. Expliquei que queria cantar de uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira. Queria mostrar uma outra mulher que há em mim. Uma outra Gal além daquela que cantava quietinha num banquinho a bossa nova. Queria cantar explosivamente. Para fora.
Gil fez então o arranjo para o 'Divino Maravilhoso'.
Quando Caetano me viu pisar o palco cheia de penduricalhos no meu pescoço, aquela cabeleira afro armada por Dedé, quase morreu de susto. Ele não sabia de nada. Não tinha escutado o arranjo do Gil, nada, nada. Cantei com toda a fúria e força que havia em mim. Metade da plateia se levantou para vaiar. A outra metade aplaudiu ferozmente. Um homem na minha frente berrava insultos. Foi então que me veio ainda uma força maior que me atirou contra ele. Eu cantava diretamente para ele: 'É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!' Cantava com tanta força e tanta violência que o homenzinho foi se aquietando, encolhendo-se, e sumiu dentro de si mesmo. Foi a primeira vez que senti o que era dominar uma plateia. E uma plateia enfurecida como aquela. Naquele tempo de polarização política, a música era a única forma de expressão. Despertava paixões, verdadeiras guerras. Saí do 'Divino Maravilhoso' fortalecida, crescida. Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa."
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