Palavras Domesticadas

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terça-feira, 7 de julho de 2020

Clementina de Jesus, A Mãe do Samba

Clementina de Jesus é uma personalidade marcante de nossa música. Dona de uma voz peculiar, que trazia a marca de sua ancestralidade africana, Clementina se tornou uma de nossas intérpretes de samba mais exaltadas, com todo merecimento. No livro Memória Musical, do jornalista Nelson Motta, lançado em 1990, reunindo textos variados sobre personagens de nossa música, o jornalista fala de Clementina em um desses textos. O livro não informa sobre a data em que as análises foram escritas, por isso fica uma dúvida sobre essa informação, porém creio que haja um erro de informação ao ser informado que a cantora tinha à época 68 anos de idade e 20 de carreira. Nascida em 1901, Clementina teria essa idade em 1969, mas naquele ano ela não tinha 20 anos de carreira, pois em 1949 ela nem sonhava em se tornar uma cantora profissional. Ela foi descoberta lá pelos idos dos anos 60 por Herminio Bello de Carvalho. Acredito que tenha havido um engano na informação de sua idade, e o texto tenha sido escrito nos anos 80. De qualquer forma, segue abaixo o texto:
"Em Vila Isabel há uma rua pequena e dentro dela uma vila. No fundo da vila, numa casinha verde e rosa de três cômodos, mora uma preta simpática, amorosa e que canta maravilhosamente bem. Clementina de Jesus tem 68 anos de idade e acaba de completar 20 anos de carreira profissional, mas é artista por vontade e vocação desde sempre, desde criança ouvindo, aprendendo e cantando as canções que sua mãe cantava enquanto lavava roupa ao sol forte de Valença.
Dentro de casa há um homem doente e Clementina toma conta dele com amor e humor. Pé Grande é seu companheiro há 35 anos - 'os melhores de minha vida', ela afirma sorrindo. Trabalhou 20 anos como empregada doméstica e aos 48 anos se transformou quase que instantaneamente em uma grande estrela para todos que encontram no samba mais que uma música, uma cultura, uma maneira de viver. Nesse mundo os maiores chamam Clementina de mãe e não há compositor que não imagine suas músicas um dia em sua voz grave, rouca e forte.
- Eu adoro essa criançada, eles são muito bons comigo. Você sabe, eu canto muito em faculdade, eles adoram. Gosto muito dessa criançada. Agora o João Bosco fez um samba pra mim. Como é que é, meu Deus?... Acho que agora esqueci; depois eu lembro.
E canta um, bendito, belíssimo, que acompanha na memória desde a beira do tanque, ao sol forte de Valença. Bendita seja.
Deitado e doente, Pé Grande gosta, sempre gostou, juntos há tanto tempo. Apesar das dificuldades há disposição para o alegre e o triste que a vida oferece. Ela conta como foi:
- Mulher está em casa, com a comida pronta, tudo na hora, o marido chega e diz que tem um pagode bom num lugar, a mulher se apronta logo e os dois vão ver se o pagode é legal mesmo. Se tem cerveja pra gente beber a gente bebe e se diverte e volta pra casa, os dois mais pra lá do que pra cá, sem fazer barulho pra vizinhança não reclamar.
Mas a vizinhança às vezes reclama da chegada dos dois, amanhecendo, alegres e cansados, rindo e falando alto, dizendo que a vida é boa.
Durante vinte anos Clementina trabalhou como empregada doméstica na casa de uma família portuguesa, no Rio.
- Eles gostavam muito de mim, eu gostava muito deles, mas a madame...
Seu orgulho e sua elegância a fazem interromper a frase. Apenas ri, sorri maliciosa, e conta como tudo começou. Quando o poeta Hermínio Bello de Carvalho a convidou para cantar no Menestrel. E em nenhum momento ela pensou que tinha 48 anos, que era empregada doméstica, se ia dar certo ou errado: tinha muita simpatia por aquele moço e muita alegria em cantar numa festa para ele e os amigos dele.
E assim foi, como num filme. Os amigos do moço adoraram: entre eles, os que preparavam o musical Rosa de Ouro, com Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Aracy Cortes, Anescarzinho; histórico espetáculo que se tornou um marco do samba carioca - onde foi lançada Clementina de Jesus, que nunca tinha pisado num palco, sacudindo o teatro e os jornais com seus jongos e partidos. Altíssimos.
Quando ela disse que ia cantar num show de teatro ouviu para que não fosse, para que deixasse daquilo, que podia ser ruim, que não tinha mais idade. Era o que a patroa dizia, e Clementina foi. Na noite da estreia - conta - tomou sozinha uma garrafa de Cinzano e entrou em cena à vontade, como quem entra num pagode legal. O preto reluzente da pele dentro do buraco do vestido, a voz do povo no porte de uma rainha; durante meses o Teatro Jovem, na Praia de Botafogo, lotou para aplaudir Clementina.
Logo depois não podia continuar trabalhando para a família portuguesa. Não quer nem precisa dizer, mas seu olho conta muito do que se passou entre ela e a madame. Concede, porém, uma graça, cochichando confidente: 'às vezes eu estava fazendo o serviço e cantando baixinho e ela passava e dizia: tá cantando ou tá miando?'
Clementina apresentou-se na Europa e África, já cantou a Marselhesa na França, foi aplaudida em todo lugar que pisou, gravou discos, conquistou corações, e começou quase aos 50 anos a ganhar a vida com o que queria e sabia desde que ouvia a mãe cantando à beira do tanque em Valença e era menina. "



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