Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 13 de julho de 2020

Jimi Hendrix Está na Dele - O Pasquim (1969)

Jimi Hendrix é inegavelmente um símbolo do rock, e uma das imagens mais difundidas para simbolizar o rock e os anos 60. Por isso, hoje, no Dia Internacional do Rock, resolvi publicar uma matéria sobre ele, de uma época em que ele ainda vivia. Foi publicada no jornal O Pasquim em 1969, escrita por Luiz Carlos Maciel. Segue abaixo:
"Para quem quiser saber como vai ser a música do futuro, da próxima década dos setenta, não conheço dica melhor do que os discos de Jimi Hendrix. Três deles já foram editados no Brasil - Smash Hits, Eletric Ladyland e Axis: Bold As Love. E outros certamente virão. Os quadrados torcem o nariz diante deles. Mas a garotada prafrentex identifica neles o som da nova Idade Elétrica na qual, segundo Marshall McLuhan, estamos inexoravelmente ingressando.
Hendrix é um crioulo americano de cara esquisita, cuja formação musical foi claramente feita pelo rhytm and blues que floresce no Harlem e em outros guetos negros dos Estados Unidos. Sem a sofisticação do jazz, que sempre foi uma manifestação musical superior, o R&B tem, porém, as suas inflexões negroides e força primitivas. Como o jazz, o R&B conheceu a sua variante branca, diluída e dirigida por interesses comerciais mais simples. Chama-se rock and roll e, como se sabe, foi a origem da música dos Beatles e o canal adequado para que as guitarras elétricas manifestassem a sua inédita sonoridade. Hendrix tocou a guitarra com alguns conjuntos de R&B, viajou para a Inglaterra, sofreu a influência do trabalho dos Beatles e dos Rolling Stones e voltou aos Estados Unidos para formar o seu próprio conjunto: o hoje célebre Jimi Hendrix Experience.
Hendrix não usa muitos instrumentos: o Experience é um trio que conta, além de sua guitarra elétrica, com um baixo e uma bateria. Ao contrário do esquema tradicional da base rítmica (feita pelo baixo e pela bateria, por exemplo), Hendrix cria uma rica polifonia de três linhas melódicas, usando cada instrumento como solista e harmonizando-os com muita inventiva. Ele retomou a orientação experimentalista dos Beatles e tenta levá-la ao seu limite. Recolheu também a contribuição da música oriental, o que veio a ser um dos elementos característicos de seu novo som.
Em que reside, porém, a originalidade desse novo som?  Ao contrário da maioria de seus companheiros de viagem, Hendrix concentra suas experiências sobre o aparato elétrico de seus instrumentos. Excelente instrumentista, na verdade um músico de qualidade superior por qualquer critério, ele explora todos os sons conhecidos e alguns desconhecidos da guitarra elétrica. Até mesmo a distorção deliberada do registro elétrico de suas gravações, é amplamente utilizada. Basta escutar Electric Ladyland, principalmente na edição original, que consta de dois LPs, para verificar que Hendrix já transformou hoje, a eletricidade no seu verdadeiro veículo de expressão musical. O que a música eletrônica aspirou a fazer, Hendrix realiza ao nível da música popular.
A diferença está no fato de que a música eletrônica, apesar da audácia, continua ligada à tradição racionalista, letrada - como diria McLuhan - da arte ocidental, enquanto a de Hendrix corresponde ao que o mesmo McLuhan chama de tendência à retribalização da juventude contemporânea. Ela envolve, para ser devidamente apreciada, uma nova sensibilidade musical que os Beatles apenas insinuaram nos seus ouvintes. Hendrix a assume, na sua integridade, e a exige em seus próprios ouvintes. É por isso que digo quer a guitarra elétrica, em Jimi Hendrix, não é apenas um novo som: é uma nova experiência existencial que exige, para que se estabeleça uma comunicação efetiva, uma alteração profunda na própria maneira de viver do ouvinte, nos próprios valores que norteiam seu comportamento e  no seu próprio sistema nervoso. Sim: a música de Jimi Hendrix exige uma realidade certamente mais fácil aos jovens e que é a condição indispensável da nova sensibilidade. Esse é o segredo da sua força e de sua originalidade.
O surgimento do jazz, na primeira metade do século, também exigiu uma nova sensibilidade e também implicava uma nova maneira de viver. Mas o jazz ainda mantinha laços firmes com os antigos padrões culturais. Havia sido criado por um negro intimamente rebelado, mas que sufocava a revolta em sua resignação: o jazz sofre a tensão desse esforço, é alegre quando bem sucedido, mas sempre dilacerado e pungente. No caso do rock elétrico de Jimi Hendrix, as pontes com os padrões culturais estabelecidos estão destruídas. Em vez de rebeldia e resignação, temos aqui uma marginalização deliberada. 'A cultura e a civilização' - diz Gilberto Gil, admirador confesso de Hendrix - 'elas que se danem ou não'.
Acredito que são os hippies, hoje o grupo humano que melhor introjetaram em seu sistema nervoso a nova sensibilidade. Eles assumiram, em sua plenitude, a nova tendência para a retribalização. Seus festivais de música revivem as antigas festas dionisíacas dos gregos através da química (drogas, LSD) e a eletrônica (guitarras elétricas, os sistemas de amplificação, os alto-falantes). Os hippies não sofrem passivamente o processo do avanço tecnológico: eles o utilizam para reformular o seu próprio sistema nervoso. Melhor do que qualquer conjunto moderno de rock, o Jimi Hendrix Experience expressa essa reformulação. Suas execuções criam um verdadeiro ritual elétrico, de orientação tribal e intenção dionisíaca. Através dos Beatles e dos Rolling Stones, o R&B percorreu um longo caminho até chegar  a Jimi Hendrix. Hoje, ele não tem mais nada a ver com a cultura ou a civilização. Está na dele."

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