Palavras Domesticadas

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terça-feira, 14 de julho de 2020

Nelson Cavaquinho - Revista Música Brasileira (1998)

A revista Música Brasileira era uma revista independente, de circulação restrita, que circulou no fim dos anos 90. Falava sobre cantores e compositores brasileiros, ligados a uma tradição musical, principalmente gente ligada ao samba. Portanto, Nelson Cavaquinho não poderia deixar de ser lembrado. Em sua edição nº 13 ele ganhou uma matéria, assinada por Luís Pimentel, e intitulada "Como Soldado da PM, Foi Um Excelente Compositor":
"- Fui o pior soldado da história da Polícia Militar do Rio e Janeiro! - disse ele, certa vez. E não estava exagerando. Começou a vida como cavalariano no Batalhão da Cavalaria da PM, onde ficou sete anos. Metade em cima do cavalo, metade em cana. Foi o mais assíduo hóspede do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas como para ele tudo tinha uma explicação, dos porres exagerados às vendas de sambas aos 'comprousitores' de plantão, as prisões tinham lá suas vantagens:
- Era bom pegar cana. Se não fosse pro xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranquilidade para compor.
Nelson da Silva nasceu no Rio de Janeiro, na Tijuca (Rua Mariz e Barros), no dia 28 de outubro de 1911. Entrou na Polícia Militar muito jovem e a contragosto, levado pelo pai, tocador de tuba da Banda da PM, Brás Antonio da Silva, com quem aprendeu a tocar cavaco. A determinação paterna também tinha uma explicação: Nelson engravidara uma namoradinha de adolescência e estava querendo fugir à responsabilidade, alegando que não tinha dinheiro para cuidar de mulher e filho. 'Não seja por isso', disse o velho Brás. 'Vai ser  polícia'. Ele não sabia com quem estava lidando.
Nelson sentou praça e recebeu as rédeas de um cavalo. Tinha que fazer a ronda montado, apesar de morrer de medo do animal. No meio do caminho desistia da ronda e deixava o cavalo amarrado em uma cerca do pé do Buraco Quente, no Morro da Mangueira. Ali varava as noites com os amigos e depois parceiros Cartola, Carlos Cachaça e Zé Com Fome. Voltava para o quartel dias depois, sem o cavalo - que geralmente se soltava e ficava vagando e pastando pelas ruas. Aí, tome xadrez, para aumentar a produção musical.
Pouco antes de morrer ele estimou sua produção em torno de 800 músicas, cerca de 400 gravadas, umas 100 inéditas e 'pelo menos 300 vendidas, totalmente ou só parceria'. Apesar dos números, quando partiu, no dia 18 de fevereiro de 1986, vítima de enfisema pulmonar, deixou apenas uma minguada pensão do antigo INPS e uma casinha da Cehab em Vila Esperança, lugarejo escondido no bairro carioca de Jardim América.
Nelson Cavaquinho teve vários parceiros, entre parcerias 'armadas' - com aqueles que pagavam para entrar nos créditos do samba - e as verdadeiras. Entre essas um nome desponta: o grande poeta Guilherme de Brito, com quem legou à história da MPB preciosidades como Quando Eu Me Chamar Saudade (Sei que amanhã quando eu morrer/Os meus amigos vão dizer/Que eu tinha bom coração), A Flor e o Espinho (Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor), que já mereceu inúmeras regravações, Folhas Secas (Quando eu piso em folhas secas/Caídas de uma mangueira/Penso na minha escola/E nos poetas da minha Estação Primeira), Cinzas, Pranto do Poeta, Degraus da Vida e tantas outras. Cantores como Clara Nunes, Chico Buarque, Beth Carvalho e Paulinho da Viola já gravaram e regravaram a dupla Nelson/Guilherme de Brito, uma eterna garantia de bom gosto.
Da fabulosa parceria com Guilherme vale o registro também de obra inédita, resgatada depois por pesquisadores, que se chama Arma de Covarde e que teria ficado inédita pelo fato de o presidente Getúlio Vargas ter se suicidado pouco tempo depois da construção da letra. Os autores ficaram constrangidos diante da tragédia nacional que foi a morte de Getúlio, porque os versos dizem o seguinte:
'A arma do covarde é o suicídio, eu bem sei.
É um erro que eu sempre condenei.
Existe sempre alguém que troca a vida pela morte.
Eu peço sempre a Deus para não me dar essa sorte.
Quisera viver eternamente
Servindo de exemplo a esta gente.
Eu vivo triste, sou um desgostoso,
Mas acho meu viver tão precioso.'
Mas, a bem da verdade, pela vida que levou, talvez ele não achasse o seu 'viver tão precioso' assim. A primeira gravação só aconteceu em 1943, o samba Não Faças Vontade a Ela, parceria com Henricão e Rubens Campos. Nelson compunha onde chegava, até porque onde chegava costumava ficar um bom tempo. Metade de sua obra foi feita em bar (seu primeiro lar), pois tinha amigos muito próximos e um fígado invejável. Abordou vários temas, mas jamais quis se envolver com o carnaval. Sobre isto, certa vez deu uma explicação:
- Música é ideia. Não faço música com livro de história do lado. Depois, esse negócio de samba-enredo dá uma confusão danada. 
Sabia das coisas."

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