Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 3 de junho de 2016

Jorge Mautner Fala de Gilberto Gil - O Pasquim (1971) - 2ª Parte

"Nova York é a cidade expressionista onde a presença da morte é tão forte como a da vida. Gil está à vontade neste mundo de tão nítidas contradições. O Empire State que parece ter saído de um filme de Andy Wharol, merece um sorriso de reconhecimento da boca de Gil, mistura de ironia antiimperial e simpatia ante o velho e  o conhecido monumento. Guilherme Araújo, agente e amigo, falando para Ruth sobre a importância de Carmem Miranda  para o mundo hip contemporâneo.
Nova York pulula e fervilha como sempre em êxtases, um milhão de coisas acontecendo, as mais variadas de todas as nações, todas as tribos, desfiles, filmes, jazz, danças, soul, sons, parques cheios de gente, peças de teatro, happenings, gente fervilhando em cima e dentro de estruturas de ferro da grande Babilônia.
Nova York é a grande Babilônia do século XX, onde todos os êxtases são permitidos. Aqui é o lugar em que mais se permite ao homem curtir sua loucura. Sartre, Bretch, Pasolini, Garcia Lorca e milhões de outros freaks, apaixonados por este inferno de poluição, veneno e eletricidade contínua, onde a condição humana aparece sem disfarces, sem mediações, atenuantes, onde ele é obrigado a assumir-se brutalmente como ele é, o amor e o ódio diretos, cruéis, nítidos, agudos, assumidos até à  loucura total. A essência do radicalismo, tudo aqui é radical. E Gil sentiu-se à vontade, como uma eletricidade dentro da eletricidade, porque afinal de contas fazia muito tempo que ele não sentia nem vivia fervilhamento igual, há muito tempo sem ter pisado o chão da América.
E eu me lembro da frase que o diretor de teatro José Celso Martinez Correa exclamou quando fascinado ouvia um soul music no Lower East Side: -"Mas, Mautner, isto aqui é o terceiro mundo!'
Não apenas o terceiro mundo, mas também o quarto mundo, com muitas pessoas vivendo já uma outra dimensão. Gilberto Gil presta atenção em tudo com tranquilidade de quem não está prestando. Olha com curiosidade para o subway (metrô) que é tão mais barulhento que em Londres, e aposto como está observando o ruído do subway novaiorquino para transformar em música futura.
Gil no show canta uma música nova de incrível beleza e sugestão de viagem para o Oriente onde está a magia e o desconhecido. Num trecho ele diz: 'Considere, rapaz, a possibilidade de ir pro Japão, num cargueiro do Loyde lavando o porão...'
Gil e Mautner nos anos 90
E a impressão é a de que Gil já foi a este oriente, ou que está indo, num cargueiro do Loyde, lavando o porão, tocando violão, tirando um som, tanto faz, de qualquer maneira ele já foi, está indo e irá cada vez mais para o oriente, para este Oriente  do Oriente que Fernando Pessoa falava, e que é a moradia da imaginação, do delírio da grande noite cósmica daonde ele retorna com ciscos de estrelas, da fantasia soberana com a loucura, onde todos os êxtases são além das fronteiras, onde a beleza é sempre reencontrada sob forma diferente.
Eu entrei em delírio poético porque a música de Gil me arrastou para isto. Nova York me arrastou para isto, o lugar mágico que Hélio Oiticica criou me arrastou para isto. Acho que esta é a mensagem da música de Gil, a beleza do desconhecido, boa sorte, representante da  Bahia em tom universal.
Último take: Gil tocando e cantando num parque do Village, com crianças de cabelos compridos como anjos brincando ao redor, muitas folhas no chão de outono, um porto-riquenho e um preto do Harlem com cabelo afro dançando ao som de Gil, Nova York, 16 de outubro de 1971. "

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