" Quando Hermeto tinha 13 anos, a família foi para Recife; em seguida ele foi para Caruaru (e o irmão, Zé Neto, para Garanhuns). Dois fatos marcaram sua vida durante este tempo em que ele rolou pelo Nordeste: a formação de um trio em Recife composto de Sivuca (na época já um acordeonista conhecido), Zé Neto e Hermeto. Como os três eram (e são) albinos, o nome O Mundo Pegando Fogo foi o que acharam de melhor. De Sivuca, com quem voltou a se apresentar 28 anos depois, em julho de 78, em Salvador, o Bruxo de Arapiraca diz: 'Ele não é meu amigo, é irmão do coração.'
E foi em Recife que ele conheceu Ilza, sobrinha de Luperce Miranda. E é ela quem vai contar sobre o encontro dos dois. Dona Ilza acaba de chegar da feira e vem sentar perto de nós, com um vestido florido, cheia de corpo e de graça, jovem ainda, com duas covinhas no rosto liso. É uma morena cor de jambo daquelas. Os seis filhos parecem-se com ela, sendo que Flávia, a de 15 anos, chega a ser papel-carbono, inclusive nos dotes culinários.
'Ele chegou com o acordeão lá em casa, olhei assim para ele e pedi: toque alguma coisa. Ele, com vergonha, só fazia olhar para baixo. Então perguntei pra minha mãe: 'será que ele não abre os olhos não?'
E Hermeto completa o relato do romance:
'Naquela época, eu ainda não usava óculos. E a Ilza olhava pra mim e ficava rindo. Eu fiquei até chateado. Comecei a ir lá assim mesmo e ferrei o namoro. Tocava na rádio com o pai dela. Ela me fez abrir o olho. Foi maravilhoso porque foi um negócio muito rápido. Casamos logo. A Ilza tinha 14 para 15 anos e eu era de menor. Tive que mentir a idade para puder casar. Desde que nos conhecemos fui dizendo o Padre Nosso para ela.
Sem essa de que mulher tem que ficar em casa. Ela passeia, vai para onde quer. Só não dá para viajar comigo por causa dos meninos. Ela fica por aqui, toma conta das coisas.'
'Sou eu quem cuida de tudo, né, meu velho? - diz Ilza passando amorosamente a mão pelos cabelos de Hermeto.
Os meninos passavam de cá para lá. Ocorreu-me perguntar como ele organizava a mesada pra a criançada. Ele riu muito.
'Mesada? Aqui, mesada só a mesa da hora do almoço e olhe lá. Todos trabalham. Os três mais velhos estudam à noite. E todos são parados em discoteque, só vendo...'
Quando Hermeto saiu de Recife, já casado, veio direto para o Rio, com o irmão, Zé Neto. Tocou em boates para sobreviver e em 60 foi para São Paulo, onde marcou época no Stardust, Jogral e João Sebastião Bar. Era a época dos grandes festivais. Surgiu então o Quarteto Novo, marco definitivo e trampolim para a fama, na carreira de Hermeto. Data daí a sua enorme amizade com o baterista Airto Moreira.
'O Quarteto Novo era um trio que acompanhava o Geraldo Vandré, você sabe: o Airto, o Téo e o Heraldo. Virou quarteto quando eu cheguei. Quando foi isso? Nossa, na era de Cristo, nem me lembro mais. Foi um embalo muito grande para essas coisas que faço hoje. Se o quarteto tivesse continuado estaria fazendo coisas do nível das que eu faço agora.'
O quarteto desfez-se com a ida de Airto para os Estados Unidos. Em 71, o percussionista mandou chamar Hermeto pra que fizesse uns arranjos por lá. Começa então a fase de reconhecimento internacional do seu talento. Em 72, Hermeto faz um show antológico no Teatro Fonte da Saudade (Rio), assistido, entre outros, por Astor Piazzolla, Egberto Gismonti, Milton Nascimento e Sérgio Ricardo. Desta fase são os sucessos Gaio da Roseira, composição de seus pais e O Trem e Flecha. Em 76, como estava há muito sem gravar, pediu ao público que foi assisti-lo na Sala Corpo e Som do MAM para que levasse seus próprios gravadores. Em 1977, inaugurava sob um chuvaréu danado a Concha Verde do Morro da Urca, com um concerto assistido por mais de 1.600 pessoas. E a superconsagração junto aos brasileiros chegou no ano passado, no Festival de Jazz de São Paulo, onde abafou o guitarrista John McLaughlin e tocou olho no olho com Chick Correa, a quem chama de Francisco Correa .
Hermeto no Festival de Jazz de SP (1978) |
'Tem uma coisa que eu gostaria muito de esclarecer, principalmente às pessoas que veem o Hermeto fazendo num festival de jazz: não me considero músico de nada, considero-me músico. Não quero que me tratem como músico de jazz. Achei legal que o festival do Japão não teve rótulo de festival de jazz. Teve um nome lindo: Festival Sob o Céu (Festival Under Sky). Sem essa de festival de jazz ou de música folclórica. Isso deixa as pessoas que tocam muito inibidas. O Brasil é o chão mais rico do mundo; é o universo que tem tudo quanto existe de ritmo.'
Essa é uma característica de Hermeto: fala dele na terceira pessoa. Uma pergunta sobre como via os musicais em nossa televisão, desencadeou uma série de denúncias e uma especial sobre o que ele chama de racismo musical.
'Vou falar construtivamente; fizeram um negócio comigo na tevê que eu não gostei. Foi no programa Esses Músicos Notáveis e Seus Instrumentos Maravilhosos, na Globo. Eles alegam que este tipo de programa é para ajudar o músico, mas desse jeito acho que atrapalha. Muito músico fora de forma, quadrado, tocando mal, com aqueles arranjos antigos, participou do programa. Arranjos que estavam engavetados, uma vergonha. O nível da música foi uma vergonha, com exceção - e essas pessoas sabem que estou falando deles - do Sivuca, do Maurício da gaita e do Radamés Gnatalli. O resto tem que juntar tudo dentro de um saco e jogar no mato. Músico não tem essa de idade e saudosismo, não'.
E continua contando o lance que o desencantou:
'Para eu participar de um programa de televisão agora eles vão ter que fazer um contrato para mim. Gravei lá na Globo, e como sei do perigo de corte - e eu não gosto disso - pedi, por favor, pra medir o tempo. O cara falou que tava tudo bem. Quando cheguei de viagem, a tempo de assistir ao programa no ar, vi com surpresa que haviam cortado um número inteiro. Isso é um desrespeito muito grande para o músico. É como um sujeito pintar um quadro e vir outro e cortar o quadro pela metade. Uma música tinha ligação com a outra.'
E então Hermeto contido, mas veemente, fez uma observação bastante válida:
'Quando se trata de música clássica eles não cortam, respeitam mais. Eu acho que não existe música clássica nem popular, o que existe é nível, qualidade da música que você faz. Enquanto não souberem respeitar isto aí, vão trabalhar contra a música e contra os músicos. Existe um preconceito, um racismo musical que precisa acabar. Eles levam ao ar uma peça de Stravinsky sem cortes, não é?
'E quem poderia acabar com isso?' - perguntamos. Ele responde na bucha:
'O governo. Tem que haver uma lei para proteger a música. Um exemplo, o Projeto Pixinguinha. É uma boa. O que estraga são as pessoas que eles botam lá dentro para organizar. Quiseram que eu tocasse sem meu grupo alegando que não há verbas. Como é que pode?'
Mas será que os arranjos avançados, o som de Hermeto, seus instrumentos diferentes têm poder de se comunicar com o chamado povão?
'É claro que tem. Já toquei na Feira de Caruaru e parou a feira toda. Toquei na rua, em Santo André. Fiz um teipe para a TV alemã em pleno Viaduto do Chá, em São Paulo. Eu lá só com a flauta e aquele montão de gente lá em cima, tudo parado para escuta. Eu até disse para o repórter; 'Eles pensam que eu sou o Roberto Carlos. A prova é clara. Todas as classes sociais foram ao Festival de Jazz de São Paulo. Vai ver quem encerrou o Festival do Japão levando 10 mil pessoas para assistir! Cinco anos sem gravar um disco e carregando mais público do que as pessoas que gravam de seis em seis meses.' "
(continua)
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