Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 2 de junho de 2016

Jorge Mautner Fala de Gilberto Gil - O Pasquim (1971) - 1ª Parte

O jornal "O Pasquim", foi, sem dúvida, um importantíssimo órgão de imprensa no Brasil, principalmente por representar  um foco de resistência contra a ditadura que reinava no país. Lançado em 1969, durante o governo Médici, o período mais violento e sangrento do regime militar no Brasil, o jornal desafiava a censura e a repressão, sendo por isso mesmo perseguido e alvo de constantes ataques da censura oficial. Havia no jornal uma ala mais ligada nos movimentos contraculturais e uma nova consciência, encabeçada por Luiz Carlos Maciel, considerado o guru da contracultura no Brasil. Caetano Veloso enviava textos diretos de Londres, onde se encontrava exilado junto com Gilberto Gil, assim como também Jorge Mautner, que também colaborava com o jornal, a convite de Maciel. Mautner também enviava seus textos do exterior, primeiramente de Nova York, e depois de Londres, onde também residiu, e conheceu e se aproximou de Gil e Caetano. Nesse texto, publicado na edição nº 122 (2 a 8/11/71), Mautner fala de Gil, num texto intitulado "Gilberto Gil na Babilônia":
"Gilberto Gil andando no Harlem indo para o Apollo Theater assistir soul music, visões do Oriente em pleno Harlem, cabelos afros e cafonismo geral. Depois Gil cantando no Folk City, onde Bob Dylan foi descoberto, lá no Village. Gil tirando um som com Airto Moreira (que foi percussionista do Miles Davis e que tem dois LPs gravados e lançados aqui em Nova York com Flora, a sua mulher) num apartamento ao lado do Central Park. Mais uma vez no Village, Gil cantando como artista convidado no 'Village Vanguard', famoso lugar de jazz onde costumam tocar Charles Mingus, Thelonius Monk, João Gilberto. Gil cantando numa missa a 'Procissão', comungando domingo de manhã, sendo aplaudido em pé pelos fiéis da igreja na rua 46 West, e Gil emocionado chorando. Finalmente Gil cantando durante duas semanas a partir das nove horas da noite num lugar mágico criado por Hélio Oiticica que usou todo seu poder de feiticeiro para criar um ambiente infernal.
Gil apresenta seu show regular mergulhado num ambiente onde luzes vermelhas, amarelas e roxas se acendem e apagam como sóis e estrelas de Galáxias desconhecidas. Às vezes o lugar parece um sítio pré-histórico, outras quando a luz fica branca e brilha em cima do cascalho, parece que o lugar é uma praia baiana cintilando fosforescências, quando Gil canta uma canção de Jimi Hendrix o lugar fica eletrônico, quando Gil canta 'Aquele Abraço' o lugar irradia carnaval.
O público novaiorquino fica maravilhado, fascinado, porque de repente em Manhattan, onde a barra é pesada, pesadíssima e terrível, surge uma pessoa afirmando a alegria sem ilusões, uma serenidade com movimento, movimento de ginga, dança-agilidade, coisa de Cosme e Damião.
Jorge Mautner
Os  brasileiros que vão assistir ao show vão reencontrar o seu poético nacional, vão ver ali no palco daquela igreja tornada em teatro, refletida como num espelho brilhante, aquilo que a alma brasileira tem de melhor, a ilusão e o jogo, e agilidade e o amor dadivoso, generoso, os cantos transformados de obás e ogês, gritos-espasmos, carnavais e candomblés, e também uma consciência cósmica.
O que mais impressiona em Gil é sua consciência cósmica. Numa conversa de toda  noite num quarto do hotel Chelsea, eu, Ruth e Gil, conversamos sobre as coisas fundamentais. Do filme 2001 à descoberta do átomo do tempo, a visão aguda do Gil em relação à sua música, os novos horizontes a que sua linguagem anseia, o novo mundo em que ele mergulha e daonde ele traz o cisco das estrelas brilhantes que encontrou, porque trazer as estrelas não dá.
Por isto ele adorou Nova York, a eletricidade fermentando, a cidade que Ezra Pound descreveu como tendo obrigado a descer para a terra as estrelas do céu. Gil caminhando pela Bleker Street (rua citada numa canção de Bob Dylan) e comunicando-se através de vibrações sorridentes com todos os freaks, loucos, hips e hippies de todos os matizes. Caminhando como um príncipe africano, sem ressentimentos e com um orgulho simples, mostrando a fotografia de seu filho Pedrinho com um ano de idade, que fica pegando na guitarra do pai, que fica muitos momentos de sua joveníssima vida dançando e cantando porque vive cercado de som. 
O mundo de Gil é cercado de som por todos os lados como uma auréola azul. Gil caminha como um samurai, um iluminado, e entra no restaurante macrobiótico e me faz uma preleção sobre o muti, chá preparado com muitas ervas. Depois fala da missão dele aceitar a música como um trabalho, o ego chutado para longe, à procura do novo caminho, o novo som que tem que nascer de um trabalho em equipe, um conjunto, trabalho descentralizado. Afirmação constante da vida. "

(continua)

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