Em 1979, a revista Ele Ela trazia uma longa matéria com o genial músico Hermeto Pascoal. Naquele ano Hermeto havia feito um antológico show no prestigiado Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, e estava lançando o álbum Zabumbê Bum Á. A matéria, assinada por Ana Lúcia Bizinover, tem por título uma frase que Hermeto falou durante a entrevista: "Existe um preconceito, um racismo musical que precisa acabar." Segue abaixo, a primeira parte da reprodução da matéria:
"Só a partir de 1972, quando fez um show no Teatro Fonte da Saudade (Rio), a imprensa brasileira começou a abrir espaço para este ser iluminado, considerado pela revista especializada Dowbeat, dos Estados Unidos, como um dos quatro maiores arranjadores da atualidade. Mas àquelas alturas, o mago das Alagoas já havia colocado água na fervura de músicos como Joe Farrell, Herbie Hancock, Hubert Laws e Miles Davis, desde que foi levado para os Estados Unidos por seu amigo, o percussionista Airto Moreira.
O que estamos precisando, agora, é ouvir mais Hermeto Pascoal e não ouvir falar dele. Precisamos ouvir sua música, enraizadamente nossa e ao mesmo tempo universal; conhecer suas posições firmes em relação aos profissionais que fazem concessões comerciais; ouvir seu coração de rapadura falando da mulher, das crianças e do modo simples de vida que levam; saber do seu enorme carinho e respeito pelos músicos do seu grupo - que vivem perto dele, numa espécie de comunidade. Hermeto diz: 'Eu sou o pastor.' Vamos segui-lo então em suas andanças.
Enquanto o carro da reportagem percorria algumas centenas de ruas e avenidas rumo ao Bairro Jabour, situado para lá de Senador Camará e além de Bangu, no Rio, uma referência ouvida sobre Hermeto Pascoal, poucos dias antes, não me saía da cabeça; 'Ele é de uma simplicidade e de uma genialidade que enlouquecem.' Essa tinha sido, justamente, minha impressão durante o nosso breve contato telefônico, quando concordou, sem maiores problemas, em receber-me ('Venha sim, precisa confirmar não, estarei esperando'). Estabeleceu-se logo, entre nós, uma ligação, para usar um termo bem hermetiano.
Afinal, ele tinha todo direito de fazer um pouco de doce. Outros, bastante menos cotados, fazem. Hermeto acabava de regressar do Japão, onde endoideceu um público de 10 mil pessoas, e da Suíça, onde roubou a festa dos gringos, sendo ovacionado delirantemente por quatro mil espectadores (sobretudo, jovens) do Festival Internacional de Jazz, em Montreux. No dia seguinte da exibição de Hermeto Pascoal na Noite do Brasil, o jornal L'Est Vaudois deu na primeira página uma foto em cores de Hermeto e uma reportagem que trazia trechos como este, captados pelo enviado especial de Ele Ela e Manchete, Roberto Muggiati: 'Hermeto demonstrou, de saída, que a música é universal e é preciso, para ser um digno embaixador dela, se alimentar do folclore das tradições, de suas próprias raízes culturais. Sua arte é de uma autenticidade que ninguém poderia contestar, não segue nenhuma moda, zomba dos gêneros e das etiquetas.'
Não foi fácil encontrar a casa verde e rosa no perdido Bairro Jabour. Cheguei a pensar que ela era a do lado, toda certinha, de tijolos aparentes. Mas conferindo o número, percebi que era mesmo aquela, com a pintura da fachada desbotada e descascando, embora a cerâmica vermelha da varanda, que entrevi pela grade, reluzisse de tão limpa. Descobri e apertei a campainha pintada de prateado, como a grade e o portão de ferro batido. Uma jovem morena, bonita, cabelos compridos e lisos veio abrir o portão, precedidos por dois vira-latas amarronzados. A jovem era Fátima, filha de 18 anos de Hermeto e que fazia as vezes de dona-de-casa. Dona Ilza , mulher do compositor há mais de 23 anos e figura da maior importância, estava na feira. Um moleque empinando uma pipa nas cores do Flamengo cortou minha frente no momento exato em que eu ia entrando na casa de um dos quatro maiores arranjadores da atualidade, segundo a revista norte-americana Downbeat. Era um bom sinal.
Hermeto Pascoal recebeu-me à porta, trajando uma camisa em tecido indiano, listrada de cinza, branco e rosa. Usava calças cinza-escuro e os cabelos louro-embranquiçados estavam presos num bem penteado rabo-de-cavalo. Os olhos azuis (ele tem um forte desvio em um dos nervos óticos) estavam um pouco escondidos por óculos de aro escuro e hastes de metal. Uma bela figura ('um raio de sol', já teria dito alguém).
Foi falando, como se já me conhecesse há muito tempo, enquanto me mostrava a casa. Como todo nascido sob o signo de gêmeos, ele é ágil e tem extrema facilidade de locomoção ('remelexo cá/remelexo lá/ remelexo em qualquer lugá'). Entrei no seu ritmo e fizemos uma volta no quarto do casal, cuja porta dá para a única sala da casa. Sobre a colcha bem esticada, uma partitura parcialmente preenchida ('é, estava compondo umas coisinhas'). Quem tem a mínima noção de teoria musical saca logo que se trata de um intrincado arranjo para diversos instrumentos. Mais tarde eu perguntaria, como?
Agora a hora era de passeio pela casa. Atravessamos um diminuto corredor com três portas - duas dos quartos das crianças e uma do banheiro - para passarmos a uma peça primordial: a cozinha. Lá está a mesa de refeições, uma televisão grande a um canto, a máquina de costura encostada à parede, uma geladeira amarela, moderna, o fogão e a pia, no momento cheia ainda com a louça do café. Fábio, o filho de 17 anos, acabava de tomar o seu café da manhã. Hermeto, então, em tom muito divertido, contou:
'Menina, se chegar aqui na hora do almoço e estiver acontecendo alguma coisa na cozinha, antes de entrar você chama a polícia! Esse negócio de eu usar as panelas como instrumento, a inspiração veio justamente daqui. Quando a Ilza está com raiva, brigando com os meninos (Jorge, 22; Fátima, 18; Fábio, 17; Flávia, 15; Fabíola, 13 e Flávio, o Brasinha, 11 anos), joga tudo no chão. Daí veio a ideia. Quando o negócio está brabo eu venho correndo com o instrumento que estiver tocando na hora e acompanho aquela zoeira. Ela então fica ainda mais louca, mas não para com o quebra-quebra, chegam os meninos todos, vira zorra, fica um som bonito e acaba todo mundo rindo e ajudando a lavar a louça. Menos eu, que se lavar, quebro tudo. Só vendo!' (Risos gerais)
Ao nos dirigirmos para a sala de ensaios, passamos por uma salinha (mais uma passagem mesmo) onde fica o som dos meninos. Por curiosidade peguei o único disco à vista; era de Elton John ('os meninos já sabem, só podem ouvir esses troços com fones'). E, de fato, havia um head fone bem à mão.
Subimos uma escadinha de pedras miúdas e coloridas ('cuidado com a cabeça') e Hermeto então abriu a porta do que em breve será um estúdio completo de gravação. O salão por enquanto é só sala de ensaios. As paredes ainda estão no cimento, mas serão forradas com material acústico isolante.
Pelas duas janelonas, a mangueira do vizinho (carregadinha de fazer dó) torna-se a ouvinte mais privilegiada. ('Imagine, esta casa aqui nos fundos parece que vai ser um consultório médico. Vai ter nego morrendo do coração quando começarmos a zoeira dos ensaios'). Os instrumentos que estão chegando pouco a pouco das tournées, como bagagem desacompanhada, estão espalhados pelo chão dentro de suas caixas pretas, com a clássica etiqueta vermelha fragile ('num adianta nada, que quebram tudo'). "
(continua)
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