"Hermeto tem razão. O povo é sensível, sabe o que é bom. Afinal, os estrangeiros também não estão bebendo nossa água?
'Sempre beberam. Mas no começo vinham escondidos. Agora não. O músico brasileiro, que é convidado para gravar com qualquer cara de fora, acredita que está tendo uma oportunidade. Como os gringos sabem disso, se aproveitam: chegam aqui e convidam um cara que toque bem frevo, marcha ou samba. Eles gravam aquilo tudo e levam a fita para fora. Lá, eles colocam uma música em cima e só botam o nome do cara brasileiro como participante. Dizem que a música e os arranjos são deles mesmo e o essencial, que é justamente a criação e a parte rítmica, eles tomam conta. Mas o culpado é o músico que aceita isso, cavando sua própria cova. Depois ficam reclamando da discoteque... Quem grava são as gravadoras,mas quem toca para elas, hein? São os músicos. Eu não faço isto. Prefiro tocar numa boate, onde você vai ganhar um pouco menos do que num estúdio (sabe-se que Hermeto ganha limpo, para dividir com o grupo, um milhão de cruzeiros pra pisar num estúdio, uma vez aceitas suas condições pra gravar) do que aceitar uma situação dessas.'
Hermeto concorda que, agora, já há todas as condições para fazer um bom trabalho de gravação aqui, o Zabumbê-bum-á é uma prova. E espera colocar a familiarada toda participando do próximo disco.
À pergunta: 'Hermeto, você fatura?' Ele é taxativo.
'Faturo. Somos muito modestos. Quando dá para comer carne, tudo bem. Senão saímos pro ovo mesmo. Agora vamos criar umas galinhas, não é Ilza?'
Nessas alturas, Dona Ilza havia trocado o vestido estampado de ir à feira por um vermelhinho decotado e mais chique. A hora sagrada do almoço estava se aproximando. O cheiro bom de carne assada começava a invadir a sala. Zabelê, a vocalista, também chega da feira e vem encontrar com o marido Nenem, que está lá em cima estudando. Toda satisfeita, numa bermuda vermelha e camiseta idem, conta que comprou um peixe deste tamanho. E toda família Pascoal rejubila-se com o fato. Um barato!
Para não ter que olhar para o relógio e de forma delicada, Hermeto falou:
'Para terminar, queria mandar um recado para os instrumentistas: que vocês não toquem música nenhuma com arranjo malfeito, desses engavetados, principalmente em programas da Globo. Vocês têm que se impor. Se tocarem bem, merecem um arranjo bem feito. Não procurem arranjadores comerciais, quadrados. Há nomes como Dori Caymmi, Wagner Tiso e Radamés Gnatalli, todos bons. E que estes também não façam concessões comerciais. Vamos tomar conta disso aí, vamos pegar no pé do pessoal. Se não tiver arranjo, não faz mal. Vão lá e toquem seus instrumentos sozinhos, que é muito bonito.'
Pausa. Princípio de fim de papo. Hermeto argumenta ainda que pode tocar em qualquer teatro do mundo da mesma categoria que o Municipal do Rio e a Sala Cecília Meireles. 'Se o Glenn Miller toca lá, por que não eu?' Mas diz que precisa ser procurado, que gostaria de dar um concerto na Cecília Meireles.
Em seguida foi lá dentro do seu quarto e trouxe um aparelho altamente sofisticado: um transmissor de fita gravada em 16 canais. Colocou o fone no meu ouvido e brincou: 'Então, suíço é frio?' Era a gravação original de sua apresentação em Montreux. A ovação é impressionante. De repente, silêncio. 'Olhaí a música que eu fiz lá no hotel'. Aos primeiros acordes, tão belos, tão liricamente puros e elaborados ao mesmo tempo, senti-me privilegiada.
Privilegiada por ouvir uma melodia certamente antológica, ao lado de Hermeto e de Dona Ilza, naquela casa encantada. E quando vi, já era tarde. As lágrimas corriam do olho para a ponta do meu nariz. Que fazer? "
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