"Desde que a família de Hermeto se mudou para o Bairro Jabour, há três anos, que o grupo está junto; e juntos eles gravaram o último LP de Hermeto, Zabumbê-bum-á, lançado em abril último. Por imposição do líder, eles só se apresentam completos. Não tem nada de cada um por si, não.
O telefone toca. É Jovino que quer saber do harmônio. Hermeto fala da nova aquisição com a maior ternura ('passei um óleo de máquina nele, só vendo'). Entra Nenen, bigodudo, de camiseta turquesa, e avisa para o chefe:
'Vou dar uma estudadinha lá em cima, tá?'
O assunto agora gira em torno do novo disco e a transa de Hermeto com as gravadoras.
'Aliás é importante você caprichar neste pedaço, porque agora vou cobrar da WEA um lançamento para a imprensa, depois de uma tournée pelas capitais divulgando o disco. Quem ouve Zabumbê sente uma consciência profissional grande da equipe toda, mas sente também um clima de certo informalismo. É como se estivesse lá também durante as gravações. O disco foi feito, por incrível que pareça, em 17 dias. Muita gente levaria até seis meses gravando um trabalho desses. Quero um lançamento com a participação de meu pai, minha mãe, falando como fizeram nas faixas São Jorge e Santo Antônio. Só vale assim.
Alguns setores da crítica especializada consideram o Zabumbê-bum-á o melhor disco de Pascoal. Em 77, no entanto, ele gravou nos Estados Unidos o Slave Mass, com produção de Airto Moreira, Flora Purim e Mazolla, onde, na faixa-título, inclui o som de um porco ao vivo. Assim viu este disco o controvertido J.R. Tinhorão: 'Posto o disco para tocar o ouvinte reconhece não estar diante de um músico comum - Hermeto não cai uma única vez em banalidades ou redundância, mas também não chega a uma conclusão.' Na mesma crítica ele se refere a Hermeto como talentosíssimo. Este disco tem ainda Chorinho pra Ele, música feita em homenagem ao irmão morto, Enésio. Waltz e Just Listen, um solo de piano de 11 minutos, belíssimo. Mas como o nosso bruxo encara estes dois trabalhos é o que importa.
'Acho que não é obrigação, é normal evoluir cada vez mais quando se faz um trabalho. Ao todo gravei cinco discos, como compositor e instrumentista e nunca fiz a menor concessão comercial. (Em 72 Hermeto gravou pela A & R um disco que contou com a participação dos cobras Herbie Hancock, Joe Farrel e Hubert Laws, entre outros; e todos sopraram garrafas...), Agora a história do porco no Missa - este o nome inicial do disco - foi o seguinte: eu imaginei uma missa sendo celebrada no mato mesmo, imaginei que no tempo dos escravos eles também rezavam, se comunicavam com Deus pedindo pras coisas melhorarem. Imaginei porcos andando livremente no mato. Hora da missa e os porcos passando. As pessoas lá acharam que eu devia botar o nome de Missa dos Escravos. Fiquei até meio cabreiro. Será que não vão pensar outras coisas? Mas, pensando bem, até que ficou bonito, ficou mais forte.'
Sobre este conjunto de trabalhos, apenas cinco realmente meus, em 30 anos de carreira, ele diz ainda, sem a menor afetação:
'A partir do disco que gravei em 72, os arranjadores lá foram criando coragem para escrever mais livre para as orquestras.
Surgiram coisas com muita percussão. Graças a Deus eu influenciei o mundo como arranjador. Tanto assim que até dois anos atrás eu era mais conhecido nos Estados Unidos e no resto do mundo como arranjador.
A partir da Missa (Slave Mass) é que fiquei conhecido como instrumentista. Nessas viagens aí é que vejo como seu conhecido. Vou às casas de discos e tem meu nome lá. Sou reconhecido como se fosse do lugar e penso: ô xente, será que nasci aqui?'
Nas reflexões acima, que na boca de outro poderiam ser puro cabotinismo, estão contidas muitas verdades, como quando ele afirma que influenciou o mundo como arranjador e é um instrumentista respeitadíssimo nos quatro cantos da Terra. O crioulão Miles Davis incluiu duas composições de Hermeto (Nem um Talvez e Igrejinha) em um dos seus discos, esquecendo-se de mencionar a autoria. Mas quando diz 'ô xente, será que nasci aqui', está brincando.
Ele nasceu em Lagoa da Canoa, Arapiraca, Alagoas, em 22 de junho de 1936. Filho de Pascoal José e de Dona Divina, por lá ficou 13 anos, sendo que desde os nove dedilhava uma sanfona de oito baixos. Ele e o irmão, Zé Neto, muitas vezes eram convidados para aparecer e tocar em festas e casamentos 'só porque éramos bonitinhos, parecíamos dois pombinhos ou bonecos de louça'. Família de cinco homens ('menina não se criava. Mamãe não quis ter muito trabalho porque vocês muiés são da daná'), todos albinos (ou aços ou sararás, cf Aurélio): Enésio, já falecido, bandolinista; Zé Neto, com quem Hermeto formava dupla e seu grande amigo de sempre; Hermeto; Manoel e Elísio, 23 anos e estudante de violão em São Paulo. Desta época, Hermeto conta uma história gozada:
'Meu pai tinha um armazém e eu, novinho ainda, de calças curtas, tocava sanfona em cima do balcão, com o Zé Neto. Uma vez passou o dono de uma boiada pela frente do armazém e viu a gente tocando bem lá por aquele mato - era mato mesmo, agora virou cidade -, e falou pro meu pai: 'Seu Pascoal, o senhor não quer me vender esses meninos, não? Eu dou um dinheiro grande para o senhor, mas não vou ficar com eles não. Vou educá-los porque aqui não tem meios. Quando eles tiverem de maior, se quiserem, voltam.'
Eu fui correndo, chorando, encontrar minha mãe. Porque papai vendia tudo mesmo. Até hoje é negociante. Se dava uma máquina de costura pra mamãe e parecia comprador, ele vendia. Fiquei com medo danado que nos vendesse também. Mas mamãe tranquilizou-me e cá estamos nós todos juntos até hoje.'
Hermeto, instrumentista avançado, arranjador dos maiores, compositor fora de série, sensível demais, revolucionário de todo tipo de som ('toco de tudo'), tem uma explicação onírica para o seu aprendizado teórico:
'Tenho escola não. Sou autodidata. Como minha religião é a música - nem teria tempo de fazer outra coisa -, acho que a teoria, essas coisas, me foram dadas de presente. Sabe quando você sonha? Quando acontece alguma coisa com você e você não sabe como? Quando você consegue uma coisa e não sabe como? Eu sei tudo de música, escrevo música até para orquestra sinfônica, conheço tudo de teoria (e baixando o tom da voz, até um pouco contrito), mas como aprendi tudo isto, eu não sei.'
Aos que dizem, nas muitas vezes que ele confirma esta versão, que Hermeto está fazendo gênero, ele corta pela raiz: 'Então você acha que se eu tivesse tido um professor ele já não teria aparecido com aluno assim famoso?' Mas o presenteado, por via das dúvidas, exige que seus meninos do grupo estudem música profundamente, que nem todo mundo nasce com este dom. "
(continua)
Nas reflexões acima, que na boca de outro poderiam ser puro cabotinismo, estão contidas muitas verdades, como quando ele afirma que influenciou o mundo como arranjador e é um instrumentista respeitadíssimo nos quatro cantos da Terra. O crioulão Miles Davis incluiu duas composições de Hermeto (Nem um Talvez e Igrejinha) em um dos seus discos, esquecendo-se de mencionar a autoria. Mas quando diz 'ô xente, será que nasci aqui', está brincando.
Ele nasceu em Lagoa da Canoa, Arapiraca, Alagoas, em 22 de junho de 1936. Filho de Pascoal José e de Dona Divina, por lá ficou 13 anos, sendo que desde os nove dedilhava uma sanfona de oito baixos. Ele e o irmão, Zé Neto, muitas vezes eram convidados para aparecer e tocar em festas e casamentos 'só porque éramos bonitinhos, parecíamos dois pombinhos ou bonecos de louça'. Família de cinco homens ('menina não se criava. Mamãe não quis ter muito trabalho porque vocês muiés são da daná'), todos albinos (ou aços ou sararás, cf Aurélio): Enésio, já falecido, bandolinista; Zé Neto, com quem Hermeto formava dupla e seu grande amigo de sempre; Hermeto; Manoel e Elísio, 23 anos e estudante de violão em São Paulo. Desta época, Hermeto conta uma história gozada:
'Meu pai tinha um armazém e eu, novinho ainda, de calças curtas, tocava sanfona em cima do balcão, com o Zé Neto. Uma vez passou o dono de uma boiada pela frente do armazém e viu a gente tocando bem lá por aquele mato - era mato mesmo, agora virou cidade -, e falou pro meu pai: 'Seu Pascoal, o senhor não quer me vender esses meninos, não? Eu dou um dinheiro grande para o senhor, mas não vou ficar com eles não. Vou educá-los porque aqui não tem meios. Quando eles tiverem de maior, se quiserem, voltam.'
Eu fui correndo, chorando, encontrar minha mãe. Porque papai vendia tudo mesmo. Até hoje é negociante. Se dava uma máquina de costura pra mamãe e parecia comprador, ele vendia. Fiquei com medo danado que nos vendesse também. Mas mamãe tranquilizou-me e cá estamos nós todos juntos até hoje.'
Hermeto, instrumentista avançado, arranjador dos maiores, compositor fora de série, sensível demais, revolucionário de todo tipo de som ('toco de tudo'), tem uma explicação onírica para o seu aprendizado teórico:
'Tenho escola não. Sou autodidata. Como minha religião é a música - nem teria tempo de fazer outra coisa -, acho que a teoria, essas coisas, me foram dadas de presente. Sabe quando você sonha? Quando acontece alguma coisa com você e você não sabe como? Quando você consegue uma coisa e não sabe como? Eu sei tudo de música, escrevo música até para orquestra sinfônica, conheço tudo de teoria (e baixando o tom da voz, até um pouco contrito), mas como aprendi tudo isto, eu não sei.'
Aos que dizem, nas muitas vezes que ele confirma esta versão, que Hermeto está fazendo gênero, ele corta pela raiz: 'Então você acha que se eu tivesse tido um professor ele já não teria aparecido com aluno assim famoso?' Mas o presenteado, por via das dúvidas, exige que seus meninos do grupo estudem música profundamente, que nem todo mundo nasce com este dom. "
(continua)
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