Um dos grandes álbuns de música negra de minha coleção, é, sem dúvida, Superfly, de Curtis Mayfield. Uma trilha sonora em que um grande mestre da black music americana coloca toda sua criatividade e musicalidade num álbum que se tornou clássico. Lembro que comprei esse disco em um brechó que também vendia vinis, e havia recebido um enorme lote de LPs, onde fiz uma grande compra, e pude adquirir essa obra-prima que faltava em minha coleção.
Para falar desse disco, reproduzo abaixo, um texto escrito pelo jornalista e crítico Regis Tadeu na revista Mosh nº 1 (agosto 2004), da qual era também editor:
"Curtis Mayfield foi um dos raríssimos artistas a expressar com perfeição a dualidade de se viver em uma época marcada por uma encruzilhada cultural. Oriundo do meio gospel, ele logo adquiriu fama e respeitabilidade ao integrar o The Impressions, com quem começou, em 65, uma de suas obras-primas, 'People Get Ready'.
Quando largou o grupo e enveredou por uma brilhante carreira-solo, Mayfield estabeleceu o terceiro vértice do triângulo formado pela doçura da Motown e pela crueza lapidada da Stax, além de ter sido um dos primeiros a cantar a necessidade do engajamento na luta pelos direitos civis da comunidade negra, sempre pela ótica da valorização do orgulho racial.
Desde sua estreia em 1970 com o ótimo Curtis, ele ele já preconizava que o otimismo hippie havia dado lugar às incertezas e à militância política, mais contundente que o 'peace & love', preconizado por gente que não era muito chegada a tomar banho. Mas foi por intermédio da trilha sonora de um dos momentos mais significativos da chamada blaxploitation (corrente cinematográfica em que diretores negros glorificavam a bandidagem e a malandragem sacana de quem vivia nos becos e sarjetas de Nova York e Los Angeles, cujo ápice foi o filme Shaft, com trilha sonora imortalizada pelo genial Isaac Heyes) que Mayfield traçou um retrato inequívoco de uma sociedade.
Embora muitos acusem Superfly de ser um péssimo filme que glorificava as drogas, a obra era um tapa com luvas de boxe na pretensa sensibilidade social americana, antepassada distante da nefasta tese do 'politicamente correto'. Mas o incrível é que sua trilha sonora era embalada com um incrível requinte melódico, com grooves monstruosos e plácidas canções que serviam de perfeita moldura para a aparente apologia ao excesso. Mais do que ilustrar musicalmente as cenas do filme e longe de qualquer tipo de julgamento moralista, Mayfield e sua voz adocicada contavam histórias por meio de letras em que não dava para separar os personagens da película das figuras reais - e tão torpes quanto - que perambulavam pelas grandes cidades americanas no período pós-Vietnan. Tal qual um poeta/menestrel atento, ele teceu incisivos comentários sociais sobre como uma poderosa América começava a se esfacelar a partir de suas entranhas, não se esquivando de questionar nem mesmo a complacência da própria comunidade negra.
Estendendo o termo 'disco conceitual' - que havia sido criado pelos Beatles em Sgt Pepper's... - para o terreno da black music (coisa que Mavin Gaye também havia feito com o espetacular What's Goig On?), Mayfield criou um verdadeiro maremoto de levadas sacolejantes, com sua guitarra plugada em pedais wah wha tão insanos quanto geniais. Sua voz em falsete, urgente, angelical e demoníaca ao mesmo tempo, era um outro instrumento, com o qual Mayfield explicitou suas convicções sociais ao contar a trajetória de um traficante prestes a se aposentar, funcionando como um microscópio da sociedade americana que a mídia hipócrita preferia ignorar.
Na abertura com 'Little Child Runni' Wild' (única das músicas não composta especialmente para o filme), a união perfeita entre a percussão latina e a base contundente do órgão Hammond serviu para Mayfield exalar a dor sentida por uma infância vivida nas ruas. Se 'Freddie's Dead' mostrava a descida ao inferno de um neguinho boa-praça, tudo sob olhar indiferente de quem via a desgraça acontecendo, a inacreditável 'Pusherman' (e sua mitológica linha de baixo) estabelecia um interessantíssimo paralelo entre o traficante e a maneira como respeitáveis homens de negócio exerciam suas atividades. A sensualíssima 'Give Me Your Love (Love Song)' e o balanço de 'Eddie You Should Know Better' eram um perfeito contraponto atmosférico à eloquente moral da história tristemente celebrada na definitiva 'No Thing on Me' e na explosão suingada da faixa-título, uma continuação de 'Pusherman', com Mayfield tentando entender a natureza do traficante.
Dois temas instrumentais formavam um caso à parte.. 'Junkie Chase' tinha uma relação musical muito próxima a 'Shaft', ao passo que a pungente 'Think', estrategicamente posicionada após a conclusão da história, fazia uso de instrumentos pouco convencionais ao estilo - como um oboé - para sedimentar a ideia de que não era preciso usar drogas para se alcançar a felicidade.
A influência do 'Brian Wilson' do soul em todos os cantores de soul, funk, r&b e o raio que o parta após Superfly foi tão intensa, que até mesmo as trilhas sonoras de filmes da TV sofreram os efeitos devastadoramente geniais causados por ele, abrindo caminho para outras experiências do gênero (a trilha de Across 110th Street foi composta por Bob Womack, enquanto que as músicas de Trouble Man vieram de Marvin Gaye) e ditando as regras da black music elaborada por todas as gerações que o sucederam - vide os Beastie Boys sampleando o baixo de 'Superfly' em 'Eggman', no disco Paul's Boutique.
Vítima de um acidente inacreditável - a queda de uma torre de iluminação em sua cabeça durante um show em 1990 deixou-o tetraplégico, o que o levou à depressão e a um câncer de próstata, que acabou matando-o em 1999 - Mayfield era tão genial que, mesmo passados 25 anos de seu lançamento, Superfly ainda é um bálsamo para nossos ouvidos cansados e claudicantes."
Embora muitos acusem Superfly de ser um péssimo filme que glorificava as drogas, a obra era um tapa com luvas de boxe na pretensa sensibilidade social americana, antepassada distante da nefasta tese do 'politicamente correto'. Mas o incrível é que sua trilha sonora era embalada com um incrível requinte melódico, com grooves monstruosos e plácidas canções que serviam de perfeita moldura para a aparente apologia ao excesso. Mais do que ilustrar musicalmente as cenas do filme e longe de qualquer tipo de julgamento moralista, Mayfield e sua voz adocicada contavam histórias por meio de letras em que não dava para separar os personagens da película das figuras reais - e tão torpes quanto - que perambulavam pelas grandes cidades americanas no período pós-Vietnan. Tal qual um poeta/menestrel atento, ele teceu incisivos comentários sociais sobre como uma poderosa América começava a se esfacelar a partir de suas entranhas, não se esquivando de questionar nem mesmo a complacência da própria comunidade negra.
Estendendo o termo 'disco conceitual' - que havia sido criado pelos Beatles em Sgt Pepper's... - para o terreno da black music (coisa que Mavin Gaye também havia feito com o espetacular What's Goig On?), Mayfield criou um verdadeiro maremoto de levadas sacolejantes, com sua guitarra plugada em pedais wah wha tão insanos quanto geniais. Sua voz em falsete, urgente, angelical e demoníaca ao mesmo tempo, era um outro instrumento, com o qual Mayfield explicitou suas convicções sociais ao contar a trajetória de um traficante prestes a se aposentar, funcionando como um microscópio da sociedade americana que a mídia hipócrita preferia ignorar.
Na abertura com 'Little Child Runni' Wild' (única das músicas não composta especialmente para o filme), a união perfeita entre a percussão latina e a base contundente do órgão Hammond serviu para Mayfield exalar a dor sentida por uma infância vivida nas ruas. Se 'Freddie's Dead' mostrava a descida ao inferno de um neguinho boa-praça, tudo sob olhar indiferente de quem via a desgraça acontecendo, a inacreditável 'Pusherman' (e sua mitológica linha de baixo) estabelecia um interessantíssimo paralelo entre o traficante e a maneira como respeitáveis homens de negócio exerciam suas atividades. A sensualíssima 'Give Me Your Love (Love Song)' e o balanço de 'Eddie You Should Know Better' eram um perfeito contraponto atmosférico à eloquente moral da história tristemente celebrada na definitiva 'No Thing on Me' e na explosão suingada da faixa-título, uma continuação de 'Pusherman', com Mayfield tentando entender a natureza do traficante.
Dois temas instrumentais formavam um caso à parte.. 'Junkie Chase' tinha uma relação musical muito próxima a 'Shaft', ao passo que a pungente 'Think', estrategicamente posicionada após a conclusão da história, fazia uso de instrumentos pouco convencionais ao estilo - como um oboé - para sedimentar a ideia de que não era preciso usar drogas para se alcançar a felicidade.
A influência do 'Brian Wilson' do soul em todos os cantores de soul, funk, r&b e o raio que o parta após Superfly foi tão intensa, que até mesmo as trilhas sonoras de filmes da TV sofreram os efeitos devastadoramente geniais causados por ele, abrindo caminho para outras experiências do gênero (a trilha de Across 110th Street foi composta por Bob Womack, enquanto que as músicas de Trouble Man vieram de Marvin Gaye) e ditando as regras da black music elaborada por todas as gerações que o sucederam - vide os Beastie Boys sampleando o baixo de 'Superfly' em 'Eggman', no disco Paul's Boutique.
Vítima de um acidente inacreditável - a queda de uma torre de iluminação em sua cabeça durante um show em 1990 deixou-o tetraplégico, o que o levou à depressão e a um câncer de próstata, que acabou matando-o em 1999 - Mayfield era tão genial que, mesmo passados 25 anos de seu lançamento, Superfly ainda é um bálsamo para nossos ouvidos cansados e claudicantes."
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