Palavras Domesticadas

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sábado, 7 de novembro de 2015

Alceu Valença - Revista de Domingo Jornal do Brasil (1994) - 1º Parte

Em 1994, a Revista de Domingo, que vinha encartada no Jornal do Brasil, trazia um perfil de Alceu Valença, um artista inquieto, que na ocasião tomava um novo rumo em sua carreira ao largar sua gravadora e entrar no mercado independente. Em destaque, a matéria, assinada por Lula Branco Martins, trazia a frase "Eterno 'maluco', larga a gravadora e volta à vida de artista mambembe'. Abaixo, a transcrição da matéria:
"Às vezes não parece de todo despropositada essa cara de Jesus que Alceu Valença tem. 'Para mim, ele é um semideus', aponta Dona Adelma, mãe do artista. 'Ele é uma luz a ser seguida por todos os nordestinos', emenda o compositor Lenine, conterrâneo. 'Ele é mais que um mito', completa outro nordestino, poeta e parceiro Carlos Fernando. E o próprio Alceu, recém-chegado de uma turnê europeia, sintetiza da seguinte maneira o que desejava quando, há algumas semanas, violão em punho, entrou no prédio da Unesco, em Paris; 'Eu só queria fazer o bem, iluminar Olinda, que tem um sistema de luz tão pobrezinho...' Que ele seja, então louvado: Frederico Zaragoza, o diretor-geral da entidade, de tão embevecido com  a retórica do cantor e compositor, beijou sua mão, prometeu verbas para iluminar a cidade - que é patrimônio histórico mundial desde 1982 e desde sempre o xodó maior da vida de Alceu - e ainda o nomeou, informalmente, embaixador de Olinda na Unesco. Antes de se despedir do brasileiro, lhe pediu que cantasse uma coisa qualquer. Naquela hora, os versos de Olinda, a música, foram, assim dizendo, uma bênção. 
Dez anos depois de invadir as rádios com Coração Bobo, Cabelo no Pente e Como Dois Animais, Alceu Valença percebeu que, seja na Europa, seja no sertão, não depende de ninguém para propagar suas ideias e fazer sua peregrinação musical. Depois de uma 'negociação adulta' com  a gravadora EMI-Odeon, pediu as contas e reinventou uma versão anos 90 da arte mambembe. Quase todo o trabalho de divulgação de seu último disco, intitulado 7 Desejos, foi feito sem suportes milionários por trás, e sim no esquema boca a boca, ou mesmo 'boca e orelha', como ele prefere dizer. 'Reparei que não estava tocando no Rio e São Paulo e quis fazer um teste pelo interior. Agendei shows e, dias antes dos espetáculos, realizava coqueteis, recebia o prefeito, radialistas... Dava para todos o meu álbum. O resultado é que minhas músicas novas, como La Belle de Jour e Tesoura do Desejo, já são quase tão conhecidas quanto Tropicana', festeja Alceu, que em setembro volta à Europa e em outubro aporta no Canecão.
 Mas ele acaba desinflando aos poucos o peito. Segura o orgulho e conclama: 'Não me considerem um heroi, nem um Cristo. Não estou fazendo nada de excepcional, nem briguei com ninguém. Apenas descobri que esse caminho era possível. Estou feliz, me sinto mais responsável por minha própria obra. ' Alceu joga os louros da investida para seu produtor executivo, André Buarque: 'Foi ele, antes de mim, antes até do meu empresário, quem acreditou nesse caminho.' Buarque, um ex-coleguinha de classe do filho mais velho de Alceu, acompanha o artista desde que era adolescente, filmando seus shows. Agora é seu braço-direito. 'Gravamos Bicho Maluco Beleza em ritmo de frevo e isto foi um pouco contra a axé music', diz André.
Aí então o bicho maluco beleza Alceu Valença dá uma de normal, baixa o ímpeto competitivo de seu produtor e desfaz, urgente, a polêmica: 'Teve um vereador que tentou impedir a axé music em Recife. Nada a ver. Tudo bem que tocou além da conta, mas a Daniela Mercury, por exemplo, é muito boa.' Há tempos que ele não quer mais saber de confusão. Nem musical, nem muito menos política. Em 1990, Alceu se engajou na campanha de Joaquim Francisco, candidato a governador de Pernambuco pelo PFL, e acabou patrulhado pela esquerda local. Picharam sua casa, jogaram lata de cerveja nos palcos em que se apresentou na época, até que esqueceram. 'No Nordeste, essa coisa de política ainda é um tanto maniqueísta, o bem contra o mal, o dragão versus o anjinho... Mas quem me vaiou na época atualmente é meu amigo. Até porque o Joaquim ganhou a eleição', brinca. 'O muro caiu, a utopia acabou, a esquerda não pode ser mais a mesma', analisa, para depois definir Itamar como um 'titio bom'. Ele torce o nariz ao ser questionado sobre Collor e grita um 'é claro!' ao afirmar que votou em Lula nas eleições presidenciais de 1989. O lado sociopolítico da obra de Alceu Valença é atestado por Ney Matogrosso - que não pensa duas vezes e o chama de visionário: 'Gravei FM Rebeldia no meu último disco. O clima da música tem a ver com os arrastões do ano passado, mas Alceu a fez muito antes de toda essa convulsão social acontecer.'
Vindo da pequena burguesia do agreste pernambucano - seu avô era fazendeiro; seu pai, promotor público - Alceu Valença, 48 anos, três filhos, 'casado três vezes e meia', nasceu na pequena São Bento do Una e passou a infância ouvindo Luiz Gonzaga nos alto-falantes. Sua mais divertida lembrança dessa época diz respeito a um concurso de música para crianças. Tinha quatro anos e defendeu um frevo de Capiba. Seu adversário, um pouco mais velho, cantou a impostada Granada. Alceu foi derrotado. Mas quando o outro menino foi a dar o bis da vitória, ele começou a pular atrás do palco, fez cambalhota, palhaçada e acabou estragando a festa do vencedor. 'Sempre fui assim, estrelinha', confessa Alceu. "
(continua)

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